a ficção pré-histórica

Entendemos como ficção uma narrativa sem pretensões de verdade.

Por mais problemática que seja a palavra verdade, todas as outras derivações e consequências daquilo que entendemos como ficção são secundárias diante deste pressuposto.

O número de personagens, o conteúdo dramático, o suporte ou mídia para o qual foi feita, quando, onde, e por quem tenha sido escrita ou contada, nada disso importa para o uso do termo ficção. Basta que seja uma história sabidamente inventada por alguém.

Imaginamos que, antes de se depararem com a importância de saberem falsas ou verdadeiras suas narrativas, os povos do passado, ao redor de suas fogueiras, já tinham se acostumado a contá-las e a ouvi-las nos momentos certos.

Qual foi, pois, a primeira história narrada? O relato de uma caçada? A descrição de um sonho? Ora, desde quando as narrativas humanas começaram a se dividir em gêneros? Será que a distinção entre uma história real e uma história inverídica foi a primeira classificação literária do mundo?

Um texto religioso certamente é diferente de um romance infantojuvenil, algo que, por sua vez, guarda diferenças óbvias em relação ao romance autobiográfico. Hoje em dia, tendo em vista as nossas livrarias e bibliotecas, os textos humanos são divididos levando-se em conta a sua origem, o seu estilo, o seu tema, o público leitor, a linguagem empregada etc. É curioso notar, contudo, que a atenção dada ao compromisso com a verdade possa se tornar um diferencial.

Por verdade, palavra tão fora de moda, entenda-se aquele conjunto de fatos com que convivemos duramente no dia a dia e aceitamos meio que por um consenso social, tal e qual teria sugerido Philip K. Dick.

Ou, segundo Diderot: “A conformidade entre os nossos julgamentos e os seres”.

Por atenção dada ao compromisso com a verdade” entendo a margem de manobra que cada autor possui para se ater aos fatos ou para inventar seu próprio mundo, de acordo com o tipo de literatura que escolheu fazer.

Um romance de costumes, por exemplo, emprestaria ao escritor bem menos liberdade para transgredir suas próprias normas do que uma novela infantojuvenil. Essas normas, curiosamente, podem ser entendidas como as convenções estilísticas fundadas pelo próprio gênero ao longo de sua tradição, bem como o elo que liga tal gênero ao cenário sobre o qual se debruça: no caso de um romance de costumes, a realidade social em que mirou-se; no caso da novela infantojuvenil, a imaginação de seu público jovem.

Do rol de palavras que guardam algum parentesco, mesmo que avesso, com ficção (cujo significado quer dizer algo fabricado), podemos pensar em história, que vem do grego ἱστορία (historíai), querendo dizer algo como investigação ou pesquisa, e cuja própria definição sugere uma relação direta com a realidade das coisas.

Mas, a História é uma investigação do quê? Do que foi e do que não foi. Do que se fez ou não.

Ainda há algumas décadas, contudo, havia em nosso idioma brasileiro uma distinção entre substantivos que levava esta mesma característica em consideração: a veracidade. Assim, chamávamos de histórias aquelas narrativas que sabíamos reais, e de estórias aquelas que considerávamos irreais.

Tratava-se de um neologismo que nunca encontrou muita solidez na norma culta, e que nas últimas reformas idiomáticas viu-se facilmente abandonado.

Outra distinção, um pouco mais distante e mais firme, poderia ser encontrada no idioma alemão, entre Geschichte e Historische. O primeiro termo significando a História oficializada pela disciplina, sob a qual se reúnem os textos históricos com sérios critérios de verdade; o segundo nada mais seria do que aquele aglomerado de histórias populares e contos folclóricos, passados de geração para geração.

Ficção, por sua vez, vem do latim, em que fictio significa fabrico. Como criação, invenção, é assim que certas narrativas figuram no mundo, tendo sua origem no mesmo lugar dentro de onde se fixam para sempre: a imaginação e a cultura humana.

Se estas narrativas ficcionais possuem semelhanças com a realidade, ou então se promovem algum distanciamento proposital em relação às coisas tais como elas são ou se apresentam, isto tudo seriam méritos ou deméritos de cada autor, sua devoção às tendências do espírito de cada século.

Há muitas variáveis entre a intenção e o resultado.

Na literatura de ficção largamente consumida pelo público há ainda outra numerosa lista de divisões por gênero e prateleiras. Todas essas divisões têm tomam como decisivo para a escolha do lugar que ocupam aquilo que o público espera delas em termos de ânimo e de veracidade.

Se determinado autor dedica-se a contar uma história dramática, com um alto teor de denúncia política e social, há vários compromissos a serem assumidos perante o tema e o repertório já constituído deste gênero que não seriam apenas estéticos, mas também políticos. Assim, não há nenhum tipo de narrativa literária que não envolva uma série de concessões a serem feitas às convenções, mesmo que muitas delas sejam produtos de tempos recentes e não funcionem para várias narrativas do passado, mitológicas ou não – o próprio surgimento de novos estilos tem a ver com a ruptura com certas convenções.

Deste modo, repara-se, por exemplo, que depois da divisão histórica empreendida pelos movimentos literários, tais como realismo ou romantismo, ainda há subdivisões, tais como Literatura de Fantasia e Literatura Fantástica, que são regularmente mercadológicas, e mais uma outra, que seria uma sub-sub-divisão, de Fantasia e Fantasia Teen, separadas pela idade do público-alvo.

Entretanto, tais divisões não devem ser tomadas apenas pelas suas aparências mercadológicas. Várias escolhas são feitas durante o processo de elaboração da obra, pelo autor e pela editora, da composição das personagens à arte da capa, e todos os juízos são estéticos.

Todas essas divisões apresentam algum parentesco com um gênero que, por outro lado, funciona quase como um guarda-chuva conceitual. A Literatura Fantástica, tipo de literatura em que certas convenções sobre a física do nosso mundo veem-se boicotadas poeticamente. Um gênero maior que compreende uma variedade considerável de obras muito diferentes entre si, dentro do qual As Mil e Uma Noites seria vizinha de Percy Jackson, O Ladrão de Raios.

Por aí, os temas da ficção e as formas pelas quais uma história pode ser comunicada literariamente continuam a ser reinventadas, de século a século, de ano pra ano. Seguindo os seus caminhos, vão os critérios pelos quais podem ser julgadas e avaliadas.

De qualquer modo e por qualquer via, por mais distante que os temas da ficção se situem em relação à nossa realidade vivida, sempre haverá o imperativo da verossimilhança e da coesão interna, segundo o qual as estratégias de convencimento do autor se permitem validadas e concorrem para a tão repetidamente citada suspensão da descrença.

No entanto, nos últimos anos, o afrouxamento das fronteiras entre o real e o irreal, o ficcional e o documental, tornou-se uma verdadeira moda literária. As relações entre tal tendência e esse período ou época da Era da Informação que o bom sociologiquês vem chamando de pós-real (pós-verdade) ainda estão para ser feitas. Talvez seja uma reação à perda da relevância e da centralidade da literatura dentro da cultura; talvez seja uma vontade de atualização da literatura aos jogos jornalísticos e publicitários; talvez seja um enrijecimento da circunscrição do âmbito literário que condena e obriga a literatura a falar só de si mesma, criando para tanto mundos dentro de mundos e deslocando o autor para dentro da obra; talvez seja o último resquício de uma pretensiosa ousadia; ou, como disse um camarada, pode ser muito bem a resposta a uma demanda por maior controle da obra e da persona pública que leva o nome de autor. Seja o que for, o turvamento entre as fronteiras dos gêneros é algo que ainda renderá muito estudos, tão numerosas são suas razões, e tão vinculadas elas se encontram ao processo de formação da cultura do presente.

Um romance jamais voltará a ser só um romance.

O material que a literatura ficcional contemporânea tem à sua disposição é vasto. Mesmo que sua fonte de inspiração seja pequena, a quantidade de informação é infinita, e pode ser extraída de absolutamente qualquer lugar: profecias, sonhos, delírios mentais, histórias de viajantes, trajetórias políticas, intrigas internacionais, diários de campanha militar, rotinas de trabalho, relações amorosas, migrações, tardes monótonas, duelos, competições esportivas, ritos alimentares, causos comuns, experiências com seres de outro mundo, enfim. Mesmo que o leque jamais se feche, por mais fantasiosa que seja, uma narrativa ficcional nunca pode ir longe o bastante que não possa voltar. Em tese, penso eu, ver-se para sempre distante do plausível e do realmente cabível é uma auto-perspectiva que a obra só pode alcançar mediante algum fracasso. Uma simples história mal contada, por exemplo – qualidade que pode ser percebida enquanto falta, não enquanto posição ou lugar em que se veja situada.

A própria definição de história bem contada parece chamar a atenção exatamente para isso: uma história bem contada, por menos cabível e mais fantasiosa que seja, pode soar convincente pela verdade que evoca. Jorge Luis Borges seria o melhor exemplar deste tipo de literatura, mas outro exemplo mais completo poderia ser encontrado nos romances históricos de Thomas Pynchon, onde o fantástico e o absurdo convivem com o histórico.

Esse equilíbrio é alcançado medindo-se a dosagem entre o imaginário e o factível. Num romance como Mason & Dixon, por exemplo, há uma tentativa muito criteriosa de imitação do vocabulário setecentista. Por outro lado, a história incorre numa série de anacronismos que são propositais, num ritmo muito mais exagerado que o de um Umberto Eco (em que o falso encontra-se tão bem misturado ao real que somente a um erudito seria permitido dar-se conta daquilo que é verdadeiro e daquilo que não é).

Ainda que os enunciados deste tipo de literatura repousem na sombra de uma ficção sincera (seus autores nunca nem de longe sugeriram que aquilo que faziam não fosse outra coisa que não literatura), algumas concessões sendo feitas e outras convenções sendo rompidas, estou certo de que quaisquer sejam os tópicos, informações e conteúdos dramáticos desempenhados ali, tudo pode servir para dar vida à imaginação do publico de maneira decisiva para sua própria vida política, confirmando suspeitas, ou fomentando desconfianças.

Como se, por meio da imaginação, a literatura camuflasse a realidade dentro dos limites estéticos de suas narrativas, oferecendo uma Verdade que não está localizada nos fatos, mas em outro lugar.

Mais ou menos aquilo, ou então o inverso daquilo que Herbert Marcuse sugeriu em Estética e Sociedade, quando nos disse que a Literatura seria mais real que a própria realidade, uma vez que dentro do âmbito estético as coisas apareceriam tal e qual elas são, ao passo que na realidade somos condicionados a experimentá-las de forma mistificada, sem a possibilidade de acesso pleno àquilo que de fato são.

Não sei se este caminho de raciocínio nos leva a uma encruzilhada ou a um beco do qual não há saída. Depondo em defesa da Arte, Marcuse não levou em conta alguns princípios que são verdadeiros lugares-comuns da disciplina da História: o fato de que a realidade é simultânea, e a narrativa literária é linear; a certeza de que narrativa literária é um procedimento textual, e a realidade é uma cena multidimensional e ininterrupta varada por linguagens muito diferentes, e na qual todas as narrativas, literárias ou não,tomam parte.

Também depondo em defesa da Arte, Aristóteles, em sua Poética, foi sentencioso, e sua observação a respeito das diferenças entre Poesia e História sobreviveu de forma um tanto infame aos séculos. Seu argumento, todavia, funciona em sentido contrário. Segundo ele, a Poesia seria sempre mais nobre e superior à História, porque estaria interessada em narrar as coisas como elas poderiam ter sido, ao passo que a outra ficaria encarregada apenas em relatar o que Alcebíades (equivalente grego para um Fulano qualquer) fez ou deixara de fazer.

A superioridade da Arte, portanto, resplandece no subjuntivo, conquanto o ofício científico não reserva para si nenhuma nobreza simplesmente porque está próximo demais daquela realidade ordinária que pode ser acessada por qualquer pessoa – mediante uma investigação qualquer. O subjuntivo se torna mais verdadeiro que o indicativo, e o historiador não precisa ser talentoso e nem lá muito criativo. Pelo menos não tanto quanto o poeta.

De encruzilhada em encruzilhada, uma bifurcação oferece um diagnóstico sem quaisquer novidades: à Arte compete a expressão da alma, da sociedade, onde se inscreve um regime de verdade praticamente atemporal, e cujo artífice desfruta de toda a liberdade para rebuscar e enfeitar sua obra; à Ciência cabe a descrição do mundo e a invenção de uma linguagem própria dentro da qual não haja quaisquer espaços para a subjetividade e a intencionalidade, e toda verdade que ela produz é provisória.

A respeito disso, encontrei em uma entrevista com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro algumas palavrinhas muito interessantes sobre o tema. Essa entrevista pode ser encontrada no final do volume A Inconstância da Alma Selvagem, publicado pela Cosac & Naify:

“A gente sabe, todo mundo que leu Kant sabe, que o ato de conhecer é constitutivo do objeto de conhecimento. Ainda assim, nosso ideal de Ciência guia-se precisamente pelo valor da objetividade: deve-se ser capaz de especificar a parte subjetiva que entra na visão do objeto, e de não confundir isso com o objeto em si. Conhecer, para nós, é dessubjetivar tanto quanto é possível. Você conhece algo bem quando é capaz de vê-lo de fora, como um objeto. Isso inclui o sujeito: espécie de caso-limite desse ideal ocidental de objetivação, aplicado à própria subjetividade. Nossa ideologia básica é de que a Ciência será um dia capaz de descrever todo o real em uma linguagem integralmente objetiva, sem resto. Ou seja, para nós a boa interpretação do real é aquela em que se pode reduzir a intencionalidade do objeto a zero.

[…]

Eu diria que o que move o pensamento dos xamãs, que são os cientistas de lá, é o contrário. Conhecer bem alguma coisa é ser capaz de atribuir o máximo de intencionalidade ao que se está conhecendo. Quanto mais eu sou capaz de atribuir intencionalidade ao objeto, mais eu o conheço. O bom conhecimento é aquele capaz de interpretar todos os eventos do mundo como se fossem ações, como se fossem resultado de algum tipo de intencionalidade. Determinar o objeto de conhecimento como um sujeito.

‘Sejamos objetivos’. Sejamos objetivos? – Não! Sejamos subjetivos, diria um xamã, ou não vamos entender nada. O pecado epistemológico ali é a falta de subjetividade. Bem, esses respectivos ideais ou modelos implicam ganhos e perdas, cada um de seu lado. Há ganhos em subjetivar, assim como há perdas. São escolhas culturais básicas.

Você tem a isso uma série de ideais alternativos, é claro, mas são casos dominados, subalternos, ou então restritos a certas dimensões do real, que se vê ontologicamente dualizado: ninguém prega, ou pelo menos ninguém leva muito a sério se alguma vez alguém o pregou, que a Verstehen, a compreensão intersubjetiva, deve incluir as plantas, as pedras, as moléculas, ou os quarks… Isso não seria Ciência. Aquele ideal de subjetividade que penso ser constitutivo do xamanismo como epistemologia indígena encontra-se em nossa civilização confinado àquilo que Lévi-Strauss chamava de parque natural ou reserva ecológica no interior do pensamento domesticado: a arte. O pensamento selvagem foi confinado oficialmente ao domínio da arte; fora dali, ele seria clandestino ou ‘alternativo’. Valorizada como seja a experiência artística, ela nada tem a ver com o experimento científico: a arte é inferior à ciência como produtora de conhecimento. Ela pode ser emocionalmente superior, mas não é epistemologicamente superior.”

Nem mesmo a reinvenção dos métodos históricos desenvolvidos pela história econômica e pela história das mentalidades seria o suficiente para redefinir tais estatutos. Na verdade caminham exatamente na direção observada.

Ainda assim, para além dessa convenção que funcionou durante tanto tempo, há quem não deixe de procurar por uma reconfiguração destes termos. Assim, num momento em que o esforço dos literatos promove o transbordamento da Literatura para outros campos mediante a anexação de inúmeros outros métodos derivados de outras áreas à forma do romance, a História também quer deixar de ser História para tornar-se, ela mesma, Literatura.

Tal iniciativa parte dos próprios historiadores contemporâneos, desconfiados que estão do estatuto de sua ciência. Segundo eles, a plenitude de seu regime de verdade estaria comprometido pelo fato de a própria História, ao elaborar suas narrativas, terminar por omitir certas informações e erigir personagens de maneira semelhante ao mise en scène encontrado em outras formas de arte, tais como a dramaturgia ou o romance literário.

A pretensão à verdade, portanto, seria irrelevante, porque nesse caminho em que o real é traduzido para dentro de uma instância narrativa, não só os fatos perderiam a sua totalidade inabarcável, mas o sentido localizado pelo historiador seria mero resultado de uma concatenação arbitrária dos eventos reais em uma linha temporal inteligível porém ela mesma imaginária. Ou seja: a História também seria uma ficção, porque foi fabricada por aquele que a escreveu.

Hayden White se tornou o nome mais famoso dessa vertente historiográfica que alguns insistem em chamar de pós-moderna. Quando questionado sobre a possibilidade de considerarmos, por exemplo, o Holocausto como uma ficção, sua resposta foi inquietante. Disse-nos que uma ficção nem sempre é uma mentira, e que muitas destas ficções são às vezes mais violentas que a própria realidade.

Isso tudo que foi dito até agora serve como introdução para a crítica do tema que pretendo desenvolver aqui: a ficção pré-histórica.

Por ficção pré-histórica me refiro àquele tipo de literatura produzida em uma época atual, mas cujas narrativas estão situadas em um passado anterior à invenção da escrita, naquilo que chamam de Idade da Pedra, entre o período Paleolítico e o Neolítico.

Não estou interessado em nomear de ficção pré-histórica as narrativas que se originaram em épocas primitivas e que se imortalizaram na cultura por meio de uma longínqua tradição oral, pelo simples motivo de que nenhum dos dois termos que definem o gênero, ficção, e pré-histórica, sejam minimamente relevantes para os povos que conceberam tais narrativas. Além disso, estas estariam muito mais ajustadas à categoria de mitos e lendas, e seus significados talvez sejam bem mais profundos e extensos do que aqueles tangenciados pela literatura contemporânea.

De minha parte, acredito que as imagens pré-históricas sejam familiares à minha imaginação desde a infância.

Não sei até que ponto isso é uma coincidência ou a consequência de uma infância decorrida ao longo da década de 1990, quando, me parece, houve uma grande difusão de informações sobre o assunto, diante da iminência dos 500 anos do Brasil, e uma popularização das descobertas feitas pela arqueóloga Niède Guidon no Parque Nacional da Serra da Capivara, onde encontram-se as datações mais antigas do continente num dos maiores sítios arqueológicos do planeta.

As descobertas de Niède teriam reorientado as teorias sobre a ocupação do continente americano, alargando o período do processo e abrangendo novas rotas migratórias, superando a famosa hipótese única do Estreito de Bering e antecipando em algumas dezenas de milhares de anos a formação das culturas nativas da América.

Longe de acreditar que tivéssemos experimentado um boom de coisas relacionadas à Pré-História, mais de uma vez recordo ter participado de encenações da vida primitiva conduzidas por professoras muitíssimo bem-intencionadas e interessantes excursões escolares a sítios arqueológicos (como o de Monte Alto-SP).

Também não poderia deixar de esquecer da vez em que assistimos ao clássico francês A Guerra do Fogo (1982), e dos olhares curiosos e impressionados de meus caros colegas de sala.

Desde então posso dizer que tenho enxergado a Pré-História como um período análogo à minha própria infância, onde minha imaginação começava a se formar e, estimulada pela visão de culturas e povos muito distantes, foi crescendo e estendendo sua curiosidade para todas as outras áreas da História. Como se a condição preambular do período fosse a germinação da própria história posterior da qual minha imaginação se alimentaria.

Isso seria confirmado pela quase total inexistência de referências à Pré-História que eu teria encontrado na minha vida adulta, depois de concluir o ensino médio e ingressar em uma graduação na área de História.

É necessário dizer que, num curso regular de História, praticamente não há quem se interesse pelo estudo das sociedades primitivas e iletradas, uma vez que trata-se de um objeto muito mais adequado aos métodos da Antropologia e da Arqueologia.

Para além da carência de uma tradição arqueológica brasileira, o principal motivo para tanto seria o apego tradicional dos historiadores aos documentos e às fontes, que adquirem outro formato em sociedades não organizadas pela escrita.

Assim, a história destes povos ditos primitivos, alguns dos quais existem até hoje, seria sempre feita tomando como centro narrativo e problema teórico o seu contato com a civilização, decisório em todas as circunstâncias em que se deu.

Não seria precisamente uma história de sua cultura, de seus personagens, de suas guerras – mas a história de seu contato com o civilizado, que é quem, na maior parte das vezes, por ser o único a deter os meios necessários para o registro dos eventos, fornece o testemunho a ser usado como fonte histórica: a escrita, o texto, a crônica.

Como Hernán Cortez relatando à corte espanhola, por meio de cartas, a conquista do México.

Isso tudo já estava bem claro em minha mente desde que terminei minha graduação. Não obstante, a notícia recente de que o Parque Nacional da Serra da Capivara fecharia para visitas me fez sair pesquisando por romances literários cuja temática fosse a vida primitiva.

Tal diligência já havia sido esboçada desde a primeira vez em que assistira ao maravilhoso Cave of Forgotten Dreams, documentário de 2010 dirigido por Werner Herzog, a respeito das pinturas rupestres da caverna de Chauvet, na França, onde se encontram as manifestações artísticas mais antigas da humanidade.

Dentre as minhas motivações, constava o absoluto desconhecimento que eu detinha em relação às obras do tema. Na verdade, pelo exotismo, eu pensava ser extremamente raro algum autor ousar escrever algo do tipo – seria necessário, na verdade, uma pesquisa relativamente extensa para a confecção de uma narrativa convincente neste terreno.

Além disso, qualquer um que tenha se aventurado a escrever um dia, sabe das dificuldades inerentes que acompanham o ofício, e que quão mais distante no tempo e no espaço se situam os seus personagens, maior é o esforço que o autor deve fazer para desenhar os atos e a fala de suas criações.

Se um escritor, por exemplo, está interessado em contar uma história cujo núcleo se desenrole durante os anos da Revolução Francesa, faz-se necessária alguma pesquisa prévia dos fatos que eclodiram naquela época, bem como do estilo de vida daquelas pessoas que nela viveram e, principalmente, da linguagem que empregavam em suas conversas. Felizmente, é um tema sobre o qual há uma infinidade de testemunhos e relatos.

No caso da ficção pré-histórica, o seu escopo é tão distante no tempo e no espaço, que as lacunas a serem preenchidas tornam-se ainda maiores. A imaginação deve ser redobrada, e o auxílio das descobertas científicas é mais do que determinante para o desenvolvimento dessas ideias literárias.

Nesse momento os dramas e dilemas com os quais os historiadores estão acostumados a lidar em suas atividades acabam sendo transferidos e compartilhados pelos próprios escritores de ficção. A pergunta não é só sobre como viviam aqueles primitivos, porque a respeito disso a Arqueologia e a Antropologia já nos dão alguma ideia. Mas também: como amavam?, no que acreditavam?, o que lhes provocava riso?, como entendiam a natureza e o mundo que os cercava?, em outras palavras, quais eram os dispositivos mentais por meio dos quais davam significados à sua experiência?

As interpretações sobre a pré-história, portanto, se dividiram em duas abordagens: uma abordagem cética, fundada na exclusividade dos registros materiais; e a comparação com os povos contemporâneos que guardam “semelhanças” com as sociedades arcaicas. O ceticismo predica que, em virtude da total escassez de fontes, não devemos inferir quaisquer certezas. A tentativa de resolver essas incertezas se apresenta na outra abordagem, cujo sentido envolve uma comparação com povos que no século XX viviam de maneira semelhante àquela em que viviam as gentes pré-históricas, por exemplo os aborígenes australianos.

É possível encontrar na literatura momentos grandiosos em que um povo dito “não-civilizado” se torna protagonista. O escritor nigeriano Chinua Achebe seria um destes casos, com Things Fall Apart e The Arrow of God. O mesmo pode ser dito para as melhores obras do realismo mágico, como Pedro PáramoHombres de Maíz ou Los Pasos Perdidos. No entanto, o cenário sobre o qual se debruçam: a América convulsionada pelos fantasmas de seus conflitos coloniais, por mais devedora que seja dos povos ditos não-europeus, ou não-civilizados, não-ocidentais, não participam do repertório imaginário que constitui aquilo que chamamos de pré-história – muito embora saibamos que a pré-história, quando vista unicamente pelo viés da escrita, tenha se prolongado em alguns rincões do continente americano até meados do século XX.

Um problema de alteridade há muito tempo confrontado pela Antropologia: como deixar que essas sociedades, a quem grosseiramente chamamos de ‘iletradas’, ‘selvagens’, ‘aborígenes’, ‘indígenas’, falem por si mesmas? Certamente que não por meio da escrita, e muito menos através daquilo que chamamos de romance.

(Talvez A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (Companhia das Letras; 2015) seja a melhor resposta para essa pergunta, mas não pretendo tentar falar sobre um livro para o qual me faltam palavras).

Curioso para saber como alguns escritores poderiam resolver tais desafios, também não deixei de me assustar com a pobreza de imaginação da literatura brasileira, tão dedicada a ruminar os mesmos eixos temáticos de sempre, esgotados e empobrecidos depois de tanto tempo, sem dedicar a mínima atenção à riqueza deixada pelos nossos ancestrais primitivos no coração de nosso país.

Assim, iniciei minha procura.

Recorrendo ao mecanismo de busca do site Goodreads.com, localizei três romances, bastante diferentes entre si, que continham histórias desenroladas em sociedades pré-históricas. Além disso, me deparei com uma extensa lista de séries novelescas do Clã da Caverna do Urso, que me pareceram ser exatamente o tipo que de literatura que alguns costumam chamar de aventura pulp. Por ser uma quantidade de livros realmente descomunal, com historietas bastante semelhantes entre si, resolvi ficar com os três romances mais interessantes com os quais havia me deparado, e que apareciam muito bem recomendados e avaliados pelo público leitor que frequentava o site.

Decidi que era a amostragem suficiente que eu precisava para confirmar algumas suspeitas.

Os três romances que abordarei aqui são os seguintes:

Por que almocei meu pai, de Roy Lewis (Companhia das Letras, 1993; tradução de Celso Nogueira); Os Herdeiros, de Sir William Golding (Alfaguara, 2015; tradução de Sergio Flaksman); e A Guerra do Fogo, de J. H. Rosny Aîné (Bamboo Editorial, 2014; tradução de Heloisa Pietro).

Posso dizer, sem qualquer vacilo ou dúvida, que o primeiro deles, Por que almocei meu pai (Why I ate Father, 1960), do jornalista britânico Roy Lewis, é um dos livros mais engraçados que já li em toda minha vida. Perdi a conta de quantas vezes tive de fechar o livro para recuperar o fôlego e voltar a lê-lo.

A história, para quem não a conhece, é narrada por um hominídeo do Pleistoceno chamado Ernest, filho de Edward, o primeiro Homo erectus a compreender e a dominar o fogo, e chefe da horda pré-histórica que é o núcleo de personagens da trama.

A comicidade vem do desajuste entre a condição miserável e pré-histórica de seres que com muito custo lutam pela sobrevivência, e a absoluta consciência científica, política, social e filosófica que possuem do próprio papel e lugar que ocupam na história da evolução.

A isso se acrescenta a fineza da ironia britânica, fácil de ser percebido em passagens como esta, na qual toma lugar um debate entre o Tio Vanya, conservador e crítico dos avanços tecnológicos experimentados pela horda, e seu irmão Edward, inventor, vanguardista, e descobridor do fogo:

“ – Você foi longe demais desta vez, Edward – rugiu. – Deveria ter imaginado que isso aconteceria, cedo ou tarde, mas preferi pensar que haveria um limite para sua irresponsabilidade. Enganei-me redondamente, no entanto! Basta virar as costas por um momento e lá vem você com mais um absurdo. Era só o que faltava! Edward, eu já me fartei de avisar, sou seu irmão mais velho, cheguei até a implorar para que refletisse mais antes de seguir por este caminho catastrófico, e tomasse jeito, evitando submeter seus familiares a um desastre irremediável. Pois bem, deixe que eu lhe diga agora, com redobrada ênfase: Pare! Pare, Edward, antes que seja tarde demais. Se ainda der tempo, por favor, pare…

Tio Vanya tomou fôlego para continuar com seu discurso impressionante mas previsível, e Papai retrucou:

– Bem, Vanya, faz bastante tempo que não nos vemos. Aproxime-se, aproveite o calor, meu caro. Por onde andou?

Tio Vanya gesticulou impaciente.

– Não fui muito longe. Tem sido uma época ruim para as frutas e vegetais nos quais baseio exclusivamente minha dieta…

– Sei disso – disse Papai solidário. – Ao que parece, teremos uma seca. Notei que a seca intensificou-se nos últimos tempos.

– Mas não em todas as partes, de modo algum. – tio Vanya contestou irritado. – Há bastante alimento na floresta, basta saber onde procurar. Apenas concluí que preciso tomar cuidado com certas comidas, a esta altura da vida… aliás, como qualquer primata dotado de bom-senso. Viajei um bocado para encontrar o que desejava. Cheguei ao Congo, na verdade, onde há fartura, sem que seja preciso ter os dentes do leopardo, o estômago do bode e os modos da hiena, Edward!

– Você está se excedendo um pouco, Vanya – protestou Papai.

– Voltei ontem – prosseguiu tio Vanya – e pensava em visitá-lo de qualquer modo. Claro, já ao anoitecer percebi que havia algo de errado. Que eu saiba, há onze vulcões nesta região, Edward, não doze! Esperava problemas, e desconfiei que você estaria por trás de tudo. Apesar dos pesares, com o coração na mão, corri para cá. Infelizmente tinha razão. Vulcões particulares, tenha dó! Você foi longe demais, Edward!

Papai sorriu enigmático.

– Acha mesmo, Vanya? – perguntou. – Atingimos o ponto crucial? É bem possível, mas não se pode ter certeza absoluta. Certamente trata-se de um momento crítico na evolução humana. Mas seria o momento? – Papai franziu os olhos, assumindo uma expressão de desespero jocoso que era uma característica dele nesses confrontos.

– Não sei dizer se é um momento crítico ou O momento crítico. – tio Vanya resmungou. – Nem tenho a pretensão de compreender o que você acha que está fazendo, Edward. Sei que deu um passo maior que a perna, isso sim. Afirmo que se trata da mais perversa e desnaturada…

– Desnaturada, você disse? – Papai o interrompeu, excitado. – Mas, Vanya, tem havido um toque artificial na vida subumana desde que adotamos as ferramentas de pedra. Talvez tenha sido esse o passo decisivo, e o resto mera decorrência; mas você também usa sílex, e portanto…

– Já discutimos isso – disse tio Vanya – Dentro de limites razoáveis, ferramentas e artefatos não agridem a natureza. As aranhas pegam suas presas em redes; os pássaros constroem ninhos melhores do que nós; e mais de uma vez esta cabeça dura foi atingida por cocos atirados pelos macacos, não se esqueça. Talvez isso tenha abalado seu cérebro. Há poucas semanas vi um bando de gorilas derrotar dois elefantes, elefantes, ouviu bem?, com porretes. Eu me disponho a aceitar que as pedras lascadas se enquadrem nos modos naturais, desde que o usuário não se torne dependente demais delas nem tente sofisticar seu uso. Não sou antiliberal, Edward, aceito o uso da pedra. Mas fogo? Isso muda tudo. Pode levar a qualquer lugar. Afeta a todos. Até a mim. Você pode queimar a floresta inteira com ele. E aí, como eu fico?”

Não me lembro onde foi que li que uma das coisas centrais ao funcionamento do humor é a quebra de expectativas, da incongruência entre a ideia e a realidade. Pois bem, grande parte da comicidade de Por que almocei meu pai é resultado desse deslocamento de um discurso político contemporâneo para a realidade pré-histórica.

Nesse ponto, entra em ação aquela dosagem da qual falei: as informações científicas divulgadas pelo livro são perfeitamente corretas, o que indica uma pesquisa muito séria feita pelo autor, ao mesmo tempo em que a fala e as ideias de seus personagens são obviamente irreais, e por serem anacrônicas, se tornam até um tanto imprevisíveis. Talvez seja isso que provoque o riso.

Trata-se de uma equação bastante interessante. Seria impossível abordar a temática tentando reproduzir, de forma realista, mas com a ajuda da imaginação e da ciência, a forma pela qual estes hominídeos interagiam uns com os outros. Além disso, os problemas e questões levantadas pela obra encontrariam grande dificuldade de exposição. De todas, essa, com certeza, é a melhor saída, porque ao mesmo tempo permite conciliar o sentido moderno de suas falas com a preservação de seu instinto animal, que assume o controle para a saída de várias situações.

A trama se desenrola a partir do conflito que nasce entre o personagem principal, Ernest, e seu pai, o inventor do fogo, Edward, desejoso de antecipar os desenvolvimentos tecnológicos e biológicos da espécie humana. Nesse conflito participam diferentes posições políticas que servem como alegoria dos dilemas modernos entre Cultura e Natureza. Isso porque cada filho de Ernest acaba desenvolvendo um talento ou uma aptidão em particular: um deles é um ótimo caçador, o outro um grande pintor de cavernas. Cada uma dessas atividades encontra um papel importante na tribo, menos aquela desempenhada pelo personagem principal: a de filósofo, cujo ofício do raciocínio e do pensamento é voltado para a crítica do próprio fundamento da sociedade em que vivem – o que acaba evoluindo para uma disputa entre ele e o pai inventor.

Transcrevo abaixo algumas cenas que julgo interessantes:

“- Você ainda não respondeu minha pergunta. Por que a descoberta do fogo não pode ser considerada uma forma de evolução, como o pescoço comprido da girafa, ou o casco do cavalo? Eu poderia desenvolver uma grossa camada de pelos se o gelo chegasse até aqui, suponho. Mas levaria muito tempo. E quando o clima esquentasse novamente, passaria mais uma era de desconforto até voltar a ser um bicho pelado. Deveria ser possível vestir e tirar a pele quando fosse preciso; isso me dá uma ideia, embora pareça difícil de por em prática.

Tio Vanya resmungou algo, e Papai prosseguiu:

– Bem, já temos o fogo, o aquecimento pode ser ligado e desligado quando queremos. Adaptação, isso sim. O mesmo que evolução, só que mais rápida.

– Este é o problema, seu miserável, projeto de homem! – Tio Vanya gritou – Não percebe que não tem o direito de apressar o ritmo natural? Quer forçar os acontecimentos em vez de ser conduzido por eles. Pretendendo ter vontade, até livre-arbítrio. Forçando a natureza. Mas não se pode acelerar o ritmo natural, você vai acabar percebendo.

– Mas é a mesma coisa. Eu não mudei nada. Estou indo um pouco mais depressa, apenas – Papai rebateu indignado.

– Não é a mesma coisa, não. – disse tio Vanya. – É algo completamente diferente! Alucinadamente veloz! Está tentando fazer em milhares de anos o que deveria ser feito em milhões… caso precise ser feito, o que acho altamente improvável. Ninguém foi criado para viver nesse ritmo alucinante! Não me venha com essa história de evolução, Edward. Além disso, não cabe a você decidir quando evoluir ou não. O que está fazendo, conforme sua própria descrição, é algo completamente diferente. Você está tentando subir na vida, isso sim. Lamento dizer, mas busca o progresso, de forma desnaturada, desobediente, presunçosa e até vulgar, classe média e materialista.”

Mais adiante:

Tio Ian era o maior viajante que conhecíamos. Perambular e explorar estava em seu sangue. Visitara praticamente todos os países da face da terra, observando arguto cada aspecto merecedor de sua atenção. Não admira que tenha passado tanto tempo ausente.

– Não adianta seguir para o Sul, na África – ele disse – A região é um beco sem saída, apesar de muito bela. Não se encontra nada, fora o mar salgado. O lugar é muito atrasado, assim como seus habitantes. Existe ali um homem-macaco promissor; anda em pé, como nós, balançando seus ombros largos, com a cabeça ereta. Mas quando ele se vira, puxa vida, que decepção! Não tem um crânio digno de nome, isso sem falar na face de gorila. Seu vocabulário mal supera o do gorila, suponho que não passe de vinte ou trinta palavras. Suas pedras são patéticas.

– Não me parece muito promissor – Papai comentou, esfregando as mãos de satisfação.

– Tampouco a mim – concordou tio Ian. E prosseguiu: – Não, em matéria de África, é preciso seguir para o norte. Há caça fácil, comida à vontade, água abundante por toda parte. No início temos apenas a mata densa e faz um calor infernal. A moda lá, por falar nisso, é ter pele negra…

– Que ideia extraordinária! – Papai exclamou – Por quê?

– Eles acreditam que assim se protegem melhor do sol, além de dificultar a localização sob as árvores – tio Ian disse.

-Estão cometendo um grande erro. – Papai ponderou. – Isso não trará bem algum. A única cor adequada para a pele humana é o marrom-escuro, ou o cáqui-carregado… a cor da savana, a cor do leão. Considero essa questão resolvida, do ponto de vista evolucionista.

– Talvez – tio Ian disse. – Todavia, tente viver na costa da Guiné. Mas, para lá da floresta tropical, quando se chega ao Saara, é como entrar no paraíso na Terra! Terra verde, adorável, até onde alcança a vista, cortada por grandes rios e incontáveis riachos de água límpida, pura, fervilhando de tanto peixe.”

E logo em seguida:

“ – Sei que atravessamos uma Idade do Gelo – Papai disse tristonho. – O problema é descobrir qual: Gunz? Mindel? Riss ou Wurm? Faz uma grande diferença, você sabe.

– Se lá qual – tio Ian disse – Só sei que estava frio demais e pronto! Desci aos vales da Dordogne e vi renas por toda parte.

– O que é rena? – Oswald perguntou.

– Um veado reformado para aguentar baixas temperaturas – explicou tio Ian.

– Como dizia, as renas tomaram conta da área, e os neandertaloides as perseguiam.

– Outra espécie de hominídeos? – papai perguntou excitado.

– Não tenho certeza se são hominídeos. – tio Ian ponderou. – Formam uma espécie notável, de qualquer modo. Diferentes de nós, certamente. Peludos, para começar, peludos como cabras gigantes. É a única maneira de enfrentar o vento gelado! Não são muito altos, nem baixos demais. Sou cerca de cinco centímetros maior que eles, isso facilitou nosso contato. Possuem o tórax avantajado e andam como macacos, com os joelhos dobrados e os pés abertos, como bebês. Quase não têm pescoço; a cabeça afunda entre os ombros, a testa é detestavelmente baixa. Mas isso não significa que inexista massa cinzenta lá dentro. Ora, claro que não! Quase dá para ver o cérebro transbordando pela orelha. Concluí que formam um grupo bem inteligente. Lascam o sílex com competência, muita competência! E me falaram de ideias estranhas, muito estranhas, nas noites em que passávamos nas cavernas contando histórias.

– Que tipo de ideias estranhas? – Papai quis saber.

Tio Ian balançou a cabeça.

– Metafísicas demais para o meu gosto, creio. Sou uma pessoa prática. Mas eles enterram seus mortos.

– Acho uma temeridade – Papai comentou.”

A invenção de um termo como ficção pré-histórica inevitavelmente teria de acabar lidando com alguns problemas. Se a tentativa é reunir dentro do gênero todos os romances que têm como temática a vida das sociedades primitivas, então terminaremos por colocar lado a lado obras muito diferentes entre si, e que trazem diferentes preocupações e levantam perguntas distintas.

Por que almocei meu pai, por exemplo, traz uma abordagem das questões científicas muito mais direta do que qualquer romance rotulado de Ficção Científica. No entanto, seu senso de humor é tipicamente britânico. Essa indefinição não é nenhum obstáculo para que possamos situá-lo, dentro da análise que pretendo aqui, ao lado das duas outras obras seguintes, também bastante diferentes entre si.

Sir William Golding (1911 – 1993) é um dos maiores escritores britânicos do século XX. Laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1983, sua principal obra é o devastador O Senhor das Moscas (Lord of the Flies, 1954).

Quem quer que tenha passado pel’O Senhor das Moscas, tenho certeza, não saiu incólume. Provavelmente é um dos mais profundos tratados sobre a natureza humana já concebidos no formato de uma prosa literária. Até para quem travou contato com a história a partir do filme de 1990 (bem mediano por sinal) não houve escapatória.

Para quem nunca ouviu falar, o enredo traz um grupo de crianças perdidas em uma ilha paradisíaca. Conforme os conflitos e as disputas por poder vão se desdobrando, as crianças entram em desacordo: parte delas acredita que há um monstro perigoso na ilha e, por conta disso, elas devem se armar e protegerem-se umas às outras; a outra parte, que raciocina um pouco melhor, acha que o monstro não existe, e que todos devem se ocupar de manter acesa a fogueira que no topo da ilha serve como um sinal de pedido de ajuda. O grupo de crianças que crê no monstro não espera ser salva por nenhum tipo de socorro; o outro grupo espera que os adultos cheguem um dia. Os primeiros, como forma de proteção contra o medo do monstro, acabam se militarizando e passam a oprimir aqueles que não creem no monstro e que não estão dispostos a pegar em armas. E aí as coisas se tornam violentas.

Os Herdeiros foi publicada no ano seguinte, em 1955, e é, segundo o autor, sua obra preferida. Nela, em vez de crianças, temos um grupo de neandertais, habitantes de uma furna, travando contato com uma tribo de Homo sapiens. O livro assume o ponto de vista de um desses neandertais, Lok, e não se omite do desafio de tentar reproduzir a linguagem e o psiquismo destes hominídeos à beira da extinção.

Assim, temos uma narrativa densa, que exige silêncio e atenção de seu leitor para detalhes que não se sobressaem à primeira vista. Como evidência dos limites linguísticos dos neandertais, temos os nomes dos protagonistas: Lok, Mal, Fa, Ha. Como pista do funcionamento de suas ideias e intuições, temos a maneira pela qual eles falam e que provoca estranhamento ao longo de todo o romance:

‘Tive uma imagem.’

Soltou uma das mãos, que apoiou espalmada na cabeça como que para conter as imagens que se sucediam ali.

‘Mal não está velho, mas agarrado nas costas da mãe dele. Tem mais água, não só aqui mas por todo o caminho que a gente seguiu. Um dos homens sabe. Faz os homens pegarem uma árvore que caiu e -‘

Os olhos afundados nas cavidades de seu rosto dirigiram-se para as pessoas, suplicando que compartilhassem uma imagem com ele. Tornou a tossir, de leve. A velha ergueu seu fardo com cuidado.

Finalmente Ha falou.

‘Não estou vendo essa imagem.’

O velho suspirou e tirou a mão da cabeça.

‘Encontrem uma árvore caída no chão.’”

A vida dos neandertais é orientada de acordo com o compartilhamento de imagens, que nada mais são do que os pensamentos, intuições e memórias dos indivíduos masculinos.

‘Estou com fome.’

Lok esmurrou o próprio peito. E gritou, para que todos ouvissem.

‘Tenho uma imagem de Lok encontrando uma árvore com muitas orelhas que crescem depressa -‘

‘Coma, Liku.’

Ha estava ao lado deles, com um punhado de bagas na mão. Despejou-as nas mãos de Liku e ela comeu, afundando a boca na comida, a pequena Oa acomodada numa posição desconfortável embaixo de seu braço. A comida fez Lok lembrar-se de sua própria fome. Agora que tinham deixado a umidade da caverna de inverno à beira-mar, e a comida de sabor estranho e amargoso da praia e dos brejos salgados, teve uma imagem repentina de coisas boas, mel e brotos de plantas, bulbos e larvas, carne vermelha, saborosa e repulsiva. Pegou uma pedra e bateu com ela no rochedo nu ao lado de sua cabeça, como se batesse num tronco de árvore.

Nil colheu uma baga murcha de uma das moitas e a pôs na boca.

‘Olhem Lok batendo na pedra!’

Quando todos riram ele se abaixou, fingindo que escutava o interior da pedra e gritando.

‘Vamos acordar, larvas! Estão acordadas?’

O vocabulário dos neandertais é povoado de metáforas. O narrador, aprisionado dentro da lente pela qual eles veem o mundo, sem dispor da liberdade de explicar as metáforas empregadas, não é totalmente onisciente. Isso adquire, para o sentido da obra, o melhor dos efeitos: a desorientação experimentada pelos neandertais é também experimentada pelo leitor. (Um belíssimo exemplo de como é possível produzir personagens complexos sem que suas falas sejam complexas).

Assim, quando a narrativa se inicia com os neandertais investigando o sumiço de um tronco pelo qual tinham o costume de passar, só é possível captar a relevância disso à luz das descobertas feitas mais adiante, quando o grupo dos neandertais trava contato com a tribo dos homens, que tem como principal atividade a manipulação dos grandes troncos da floresta para a construção de jangadas e moradias.

O raciocínio dos neandertais, portanto, é o tempo todo estimulado e confrontado com situações para as quais lhes faltam palavras, nomes e termos que os descrevam. Diante da violência e da impetuosidade da tribo humana, eles são forçados a criar metáforas, comparações e a produzir significados que até então não conheciam e sequer sabiam possíveis:

“Visualizou os caçadores saindo atrás da presa com suas varas curvas, com destreza e premeditação.

‘As pessoas são como um lobo esfaimado no oco de uma árvore.’

Pensou na mulher gorda defendendo o mais novo da investida do velho, pensou na sua risada, nos homens trabalhando juntos para levantar a mesma carga e trocando sorrisos.

‘As pessoas são como o mel que escorre de uma fenda na pedra.’

Pensou em Tanakil brincando, nos seus dedos habilidosos, em seu riso e sua vara.

‘As pessoas são como o mel das pedras redondas, o mel novo que cheira a fogo e a coisas mortas.’

Tinham expulsado os moradores da furna e de toda a área com pouco mais que um gesto das mãos.

‘São como o rio e a cachoeira, são o povo da cachoeira; nada consegue fazer frente a eles.’”

A angústia nasce do absurdo que se apresenta diante deles. A relação dos neandertais com os humanos é governada pela incomunicabilidade: os primeiros são monstros para os segundos; os segundos são incompreensíveis para os primeiros. O triste desaparecimento de sua própria tribo é difícil até de ser absorvido, e assim, os neandertais encontram outros impasses: o que sentir? O que pensar? O que fazer?

Quando restam apenas os dois últimos indivíduos, somos apresentados a uma das cenas mais fantásticas da literatura contemporânea: escondidos, cochichando dentro de um tronco, os neandertais observam a vida dos seres humanos.

Como os fantasmas ancestrais de uma pré-humanidade para sempre perdida, é pelos olhos deles que somos levados a estranhar a nossa própria humanidade, descrita pelos termos dos neandertais que a observam, escondidos no tronco. Por isso mesmo, por nos ser apresentada dentro dos termos deles, e não dos nossos, o comportamento da tribo humana parece até mesmo ininteligível.

Essa perspectiva é determinante para que se entenda aquilo que o autor provavelmente tinha em mente. Outra informação importante nos é dada na epígrafe, a qual reproduzo aqui:

“… Sabemos muito pouco sobre a aparência do homem de Neandertal, mas tudo… parece sugerir uma pelagem densa, a feiura, ou uma estranheza repulsiva em sua aparência para além de sua testa baixa, de suas sobrancelhas grossas e proeminentes, de seu pescoço simiesco e de sua estatura inferior… Diz sir Harry Johnston, num ensaio sobre o surgimento do homem moderno em seu livro Views and Reviews: ‘A desbotada memória racial que temos desses monstros que lembram os gorilas, com seu cérebro ardiloso, seu andar trôpego, seu corpo peludo, seus dentes fortes e, possivelmente, sua tendência ao canibalismo, pode ter sido o germe do ogro no folclore…’”

H. G. Wells, História Universal

(Outline of History, 1920)

É uma história de monstros, narrada do ponto de vista dos próprios monstros, que sequer reconhecem sua condição, uma vez que só se tornam monstros quando há um deslocamento do ponto de vista. Da segunda metade em diante, a partir do momento em que o contato com a tribo humana se faz cabal, irrefreável, e impõe uma série de perdas irrecuperáveis aos neandertais, tais como a morte do líder, da matriarca e a perda do território, o ímpeto dos sobreviventes resume-se a uma única coisa: recuperar as duas crianças que foram capturadas pela tribo dos homens.

No entanto, essas tentativas de resgate, uma vez que são “mediadas” pela incomunicabilidade, resultam em desastres cada vez maiores.

Lok, o neandertal, é como o ogro que surge no meio da noite para amedrontar as crianças, e de quem ouvimos os grunhidos e gritos horrorosos.

Um ogro que até então vivia integrado à natureza, em meio a paisagens virgens de cachoeiras, florestas, riachos, e que não dispunha dos mesmos dispositivos que os humanos desenvolveram quando começaram a se diferenciar da natureza.

Indícios recentes levantam a hipótese de que uma grande quantidade de indivíduos vivendo na Europa, sobretudo nas porções mais setentrionais, carreguem uma carga genética herdeira dos velhos neandertais. Na dinâmica das populações, em algum momento eles devem ter se integrado à sociedade humana. A captura da prole, dos indivíduos mais novos, como crianças e bebês, em virtude da morte dos mais velhos, tal e qual acontece no romance, é uma explicação compatível com a natureza do comportamento das tribos humanas. Doloroso, mas plausível.

Os Herdeiros e O Senhor das Moscas são os dois únicos livros que li de William Golding. Sei que há uma outra obra que é situada no Egito Antigo. Não sei até que ponto a temática da natureza humana, da sua propensão para a violência e das suas falhas de comunicação se estendem em seus outros romances. Se O Senhor das Moscas pode funcionar como uma alegoria para o Jardim do Éden, a Torre de Babel, a caçada selvagem, ou quaisquer outros temas arquetípicos que possam ser encontrados e interpretados ali, Os Herdeiros é uma obra bem menos alegórica. Eu diria que, levando em consideração a justeza com que a mensagem poética nasce da realidade descrita, é um trabalho insuperável, e a obra máxima daquilo que deve ser chamado de ficção pré-histórica.

A última obra é o bastante citado A Guerra do Fogo, de 1909. Trata-se de um romance infanto-juvenil de um escritor francês conhecido pelo pseudônimo de J. H. Rosny Aîné (Joseph Henri Honoré Boex ; 1856 – 1940). O livro rendeu em 1982 uma adaptação para o cinema que leva o mesmo título – um filme fascinante e muitíssimo bem executado, para o qual Anthony Burguess contribuiu na elaboração dos diálogos e da gestualidade -, obrigatório para ser usado nas escolas.

Numa pesquisa rápida pude descobrir que Rosny Aîné era, em sua época, considerado um escritor de ficção científica e de literatura infanto-juvenil, e a ficção pré-histórica inexistente, não era nada menos do que uma dentre tantas outras possibilidades e ramificações de um gênero maior.

Além de A Guerra do Fogo, há de sua autoria outros dois romances situados também na pré-história, e que contam com enredos semelhantes: Vamireh (1892) e Helgvor du Fleuve Bleu (1930).

As características são aquelas comuns aos romances mais simples de ficção científica da virada do século, e guardam muitas semelhanças com aquilo que chamam de literatura pulp: aventura abundante; personagens rasos; linguagem repetitiva e/ou pouco desenvolvida; imaginação marcada pelo exotismo.

Uma vez que o conhecimento científico disponível sobre a pré-história era bem menor naquela época, a imaginação corre para tentar preencher o espaço deixado pela lacuna da ciência. Velhos conceitos e preconceitos se tornam determinantes. O resultado, aqui, é um tanto quanto sofrível, e lamentavelmente piorado pela técnica narrativa do autor.

A história parecerá familiar para quem assistiu ao filme: um grupo de seres humanos habitantes das cavernas, conhecidos como Oulhamr, é atacado e perde a fogueira e o fogo que durante tanto tempo conservavam. Sem o fogo, são obrigados a refugiarem-se em um pântano. Dali, enviam três guerreiros, Naoh, Gaw e Nam, para irem em busca do fogo, em uma jornada cheia de perigos e contratempos, mas com muito espaço para o heroísmo e para a promessa de um prêmio que é a mais bela garota da tribo.

Parece-me verdadeiramente difícil descrever ou desenvolver uma crítica sobre um romance que eu não tenha gostado. Mais do que não ter gostado, me foi uma luta dura e difícil transpor as quase 300 páginas do livro. Tudo isso por conta de certos vícios que se perpetuam durante toda a narrativa e não contribuem para a ampliação do enredo. Por mais que o autor se esforce em fazer parecer grandiosa a aventura dos Oulhamr, pelo excesso de episódios parecidos, pela narração repetitiva, o preenchimento dos intermédios, o quadro final acaba parecendo, aos olhos do século em que estamos, um tanto ingênuo.

Isso que estou dizendo pode ser facilmente localizado em duas características que saltam aos olhos logo na primeira leitura. A primeira delas é a paixão do autor em descrever os animais, e os conflitos entre espécies distintas, os seus movimentos e pensamentos como se fossem iguais aos de um humano. Talvez o que o tenha motivado isso seja a sugestão de que, naquela época, os seres humanos, desfrutando de uma vida mais simples e, portanto, mais próxima da natureza e dos outros animais, ainda não havia se dissociado deles e tinham, neste sentido, uma maior percepção de seus ânimos. O homem, nesta imagem, era apenas mais um dentre todos os outros animais da Criação.

A outra característica é o verdadeiro estado de guerra absoluto em que até então viviam todas essas criaturas. Todas as relações são conflituosas, tanto aquelas entre os humanos, quanto aquelas entre os animais. Há apenas dois momentos em que essa regra de caos e conflito se rompe: quando os Oulhamr estabelecem uma aliança com os mamutes, ou quando encontram a ajuda de uma tribo humana mais avançada, que os ensina a fazer fogo.

Pelo excesso de repetições, as descrições da natureza se tornam um verdadeiro tédio e um fardo para a leitura. Trechos como este são abundantes:

“Os guerreiros alimentaram-se de carne crua. A refeição foi triste: amavam o aroma da carne cozida. Em seguida, Naoh fez o primeiro turno de vigia. Todo o seu ser se absorvia na noite maravilhosa, por onde penetravam as sutilezas do Universo: seus olhos discerniam as fosforescências, os pálidos contornos, os deslocamentos das sombras, e depois subiam até os astros; seus ouvidos captavam as vozes da brisa, os estalidos dos vegetais, o voo dos insetos, os passos e saltos dos animais; conhecia a diferença entre o chiado do chacal e o riso da hiena, o uivo dos lobos, o grito da águia e o rangido dos gafanhotos.”

E mais adiante:

A Lua, menor e mais luminosa, perdia-se entre as estrelas: as mais fracas permaneciam invisíveis, as mais brilhantes pareciam mal iluminadas, como se estivessem afogadas em meio a ondas de luz; um torpor suspeito cobriu a floresta e a savana. Às vezes, uma coruja sulcava a atmosfera azul num voo extraordinariamente silencioso sobre asas emplumadas; às vezes, bandos de rãs cantavam pousados sobre as folhas das ninfeáceas; falenas circulavam em movimentos ligeiros, chocando-se contra alguns morcegos que deslizavam através das trevas.

Por fim, os uivos ressoaram, ecoando ao longo do rio e nas profundezas das florestas; Naoh percebeu que os lobos haviam cercado uma presa. Não foi preciso esperar muito para ter certeza. Um animal disparou na planície. Parecia um cavalo de peito estreito, com uma risca marrom marcando-lhe a espinha. Lançou-se com a velocidade de um antílope, perseguido por três lobos que não tinham sua agilidade e, por isso, contavam apenas com a própria resistência, esperando que um acidente os ajudasse a capturar sua presa. Os lobos, aliás, não corriam a toda velocidade, continuando a responder aos uivos de seus companheiros em emboscada. Logo apareceram, e o animal se sentiu cercado. Parou, tremendo sobre os cascos, explorando o horizonte antes de tomar uma decisão. Todas as saídas lhe haviam sido barradas, menos o caminho do norte, onde ele só avistava um velho lobo acinzentado. Encurralado, optou por essa via. O velho lobo deixou-o vir, impassível. Quando o animal chegou perto e se virou para escapar, ele soltou um uivo grave: três lobos apareceram no alto de um morro.

O hemíono parou com um grande gemido. Sentiu-se cercado pela morte e pela dor. O espaço se fechava, seu corpo ágil já se escapara de tantas artimanhas: sua astúcia, seus cascos ligeiros, sua força fracassaram simultaneamente. Ele virou a cabeça várias vezes em direção a esses seres que não viviam da relva nem das folhas, mas sim da carne viva: ele implorou em silêncio. Os lobos trocavam uivos, fechando o cerco; seus olhos revelavam a presença de trinta caçadores: saltaram sobre a presa, evitando os duros coices; os lobos que estavam na dianteira ameaçavam ataques, para que o animal parasse de proteger seus flancos. Então, de um só salto, recorrendo uma vez mais às patas na luta pela liberdade, o animal vencido atirou-se cegamente no ar, numa tentativa de romper o círculo de lobos, ultrapassando-os. Derrubou o primeiro lobo, atingindo o segundo: um espaço embriagador abriu-se diante dele. Um novo lobo atacou-o de improviso; outros cravaram-lhe dentes, dilacerando a carne. O animal escoiceou desesperado; um lobo rompeu o maxilar e rolou na relva. Mas o pescoço do equino se abriu, seus flancos avermelharam-se, dois cascos estalaram sob os ataques dos caninos e foi invadido por correntes de dentes que o devoraram vivo.”

Há uma reiteração constante da abundância natural: um sem número de espécies diferentes convivem e guerreiam entre si, aos olhos do homem. Guerreiam da mesma forma que uma tribo humana guerrearia. Uma cena seria o bastante para que o autor provasse seu ponto e, no entanto, o que se vê é o prolongamento daquilo que não deveria ser prolongado. Então, depois que vemos os auroques guerreando com os mamutes, também vemos a fuga da tigresa, a caça dos cães do mato, os lobos contra o javali, as hienas contra os lobos etc – o preenchimento da narrativa com cenas semelhantes aos documentários do Nat Geo, só que na pré-história.

Há um motivo hobbesiano aí, alguém poderia alegar. A guerra de todos contra todos, predominante no reino da natureza, é o que fundamenta a barbárie do homem antes que ele seja salvo pela sociedade civil organizada por um Estado. Assim, homem e animal compartilham o estado de selvageria daqueles que desconhecem a paz, e cuja existência se funda na disputa pelo domínio dos meios de sobrevivência, o fogo sendo o principal deles.

Por isso todas as relações, antes de serem marcadas pela incomunicabilidade, como é o caso d’Os Herdeiros, são baseadas na guerra, no conflito, no butim, no rapto de riquezas e de prisioneiros. O cenário ideal para que nasça o heroísmo – a vivificação das histórias dos grandes guerreiros que terão suas lendas contadas pelas gerações seguintes. Para o prestígio dos heróis, os inimigos dos Oulhamr são humanos de todas espécies: pigmeus, canibais, gigantes que vivem na floresta, e, em alguns momentos, até eles mesmos.

É um mundo superpovoado. Seu funcionamento é pouco crível. Na abundância da vida, caberia aos grupos humanos um sentido de cooperação maior do que o de competição.

Aliás, é risível que, olhando em retrospectiva, tenha parecido mais fácil aos heróis da história fazer amizade com os animais do que com os próprios seres humanos. Entre os Oulhamr e os mamutes há um entendimento não-verbal quase solene. Entre Naoh e a tigresa por ele machucada e humilhada, há uma relação de dominação e respeito muito bem resolvida entre ambos. O mesmo, contudo, não se vê na relação de Naoh com qualquer outro inimigo humano, todos eles bem menos expressivos que os animais.

Talvez tudo isso acabe se tornando um quebra-cabeça. O esforço em destacar as dificuldades dessa vida mais simples, ao mesmo tempo em que ela aparece contornada de certa nostalgia, acaba interpondo entre os dois mundos, o nosso e o deles, uma distância intransponível que, até então, era vislumbrada por diversas áreas do pensamento e da ciência, desde o Iluminismo, de Hobbes a Rousseau.

Isso encontra eco no costume, difundido desde a colonização da América, em compreender as sociedades ditas primitivas de acordo com uma linha evolutiva imaginária, segundo a qual as povoações humanas teriam necessariamente de passar pelas mesmas etapas.

Assim, costumávamos olhar para estes outros povos não-civilizados sempre de uma mesma forma, avaliando-os de acordo com aquilo que lhes faltava: aquilo que nós possuíamos e eles não. Isto é: um Estado, uma Lei, um Deus.

Recordo-me das palavras de Pierre Clastres:

“Foi o descobrimento da América que, como se sabe, forneceu ao Ocidente a ocasião de seu primeiro encontro com aqueles que, desde então, seriam chamados de selvagens. Pela primeira vez os europeus viram-se confrontados com um tipo de sociedade radicalmente diferente de tudo o que até então conheciam, precisaram pensar uma realidade social que não podia ter lugar em sua representação tradicional do ser social: em outras palavras, o mundo dos selvagens era literalmente impensável para o pensamento europeu. Aqui não é o lugar de analisar em detalhe as razões dessa verdadeira impossibilidade epistemológica: elas se relacionam à certeza, coextensiva a toda a história da civilização ocidental, sobre o que é e o que deve ser a sociedade humana, certeza expressa desde a aurora grega do pensamento europeu do político, da polis, na obra fragmentária de Heráclito. A saber, que a representação da sociedade como tal deve encarnar-se na figura do Um exterior à sociedade, na disposição hierárquica do espaço político, na função de comando do chefe, do rei ou do déspota: só há sociedade sob o signo de sua divisão em Senhores e Súditos. Resulta dessa visão do social que um grupo humano que não apresente o caráter da divisão não pode ser considerado uma sociedade. Ora, quem é que os descobridores do Novo Mundo viram surgir nas praias atlânticas? “Gente sem fé, sem lei, sem rei”, segundo os cronistas do século XVI. A causa era assim entendida: esses homens no estado de natureza não haviam ainda chegado ao estado de sociedade. Quase unanimidade, perturbada apenas pelas vozes discordantes de Montaigne e La Boétie, nesse julgamento sobre os índios do Brasil.

Mas unanimidade irrestrita quando, em troca, tratava-se de descrever os costumes dos selvagens. Exploradores ou missionários, mercadores ou viajantes estudiosos, do século XVI até o final (recente) da conquista do mundo, concordam todos num ponto: quer sejam americanos (do Alaska à Terra do fogo) ou africanos, siberianos das estepes ou melanésios das ilhas, nômades dos desertos australianos ou agricultores sedentários das selvas da Nova Guiné, os povos primitivos são sempre apresentados como apaixonadamente dados à guerra, é seu caráter particularmente belicoso que impressiona sem exceção os observadores europeus. Da enorme massa documental reunida em crônicas, relatos de viagem, relatórios de padres e pastores, militares ou traficantes, surge, incontestada, primeira, a imagem mais evidente que oferece de saída a infinita variedade das culturas descritas: a do guerreiro. Imagem suficientemente dominadora para induzir uma constatação sociológica: as sociedades primitivas são sociedades violentas, seu ser social é um ser-para-a-guerra.

Pierre Clastres, A Arqueologia da Violência [tradução de Paulo Neves; Cosac Naify, 2004]

Assim, por mais diversificada que sejam as formas de se contar uma história, por mais artifícios que os escritores consigam colecionar ao longo dos tempos, ainda há amarras para a imaginação.

Isso é exemplificado pelo exato caso aqui em questão. Três obras totalmente distintas entre si, saídas de épocas e lugares diferentes do século XX. Talvez a humanidade perdida sobre a qual se debruçam nem seja a mesma. Cada uma é produto de seu autor.

E mesmo assim, não há como fugir do ponto para o qual todas elas convergem: a ficção pré-histórica tem como tema central a luta pela sobrevivência.

Uma temática que é quase inexistente na literatura contemporânea, muito mais ocupada em falar dos dramas familiares, da fragilidade dos laços humanos ou do absurdo da existência – por ser uma experiência rara, é na raridade do passado longínquo que podemos encontrá-la, como se houvesse aí um desejo de nos reatarmos com as verdades essenciais da vida.

Se isso adquire ares cômicos e modernos, como em Por que almocei meu Pai, ou se encontra um refinamento filosófico e linguístico em Os Herdeiros, ou se é abordada como a lenda heroica de um povo sendo contada ao redor de uma fogueira, tal e qual n’A Guerra do Fogo, isto diz mais respeito às sutilezas e escolhas estéticas de cada autor do que qualquer outra coisa. Quer dizer, na verdade, que um mesmo tema pode adquirir diferentes expressões e roupagens, de acordo com o estilo e com a reserva de conhecimento disponível em cada época. Alguns autores serão mais cuidadosos do que outros. Alguns levarão as verdades científicas mais a sério; outros, sem que possam recorrer a elas, darão suas próprias contribuições à imaginação humana.

Pois que quando se fala em ficção pré-histórica um outro problema já se destaca desde cedo, na própria delimitação do objeto: uma sociedade absolutamente textualizada se põe a imaginar uma sociedade não-textualizada. Devemos seguir com cautela todas as precauções admoestadas pelos antropólogos, posto que é justamente pela via da antropologia que alguns clichês podem ser superados. Uma vez que todo nosso ser social é definido pela linguagem, nossa vida política e estruturas afetivas podem ser organizadas por formas textuais, como imaginar, pensar, e, pior de tudo, como escrever sobre uma sociedade na qual não há escrita?

A imaginação se atém ao básico. A luta pela sobrevivência dos povos primitivos é análoga à luta do escritor contemporâneo, que quer fazer produzir subjetividade num terreno em que ela já nem é mais discernível. Isso porque as ciências históricas nos dizem que a individualidade é um dado recente, conquistado justamente pelo desenvolvimento das formas estéticas, do aprofundamento da memória e da psicologia, da diversidade de experiências possíveis de serem transferidas para a dimensão da autorreferência. Se não é deste mundo que falamos, mas de outro, então trata-se de recuar no tempo e purificar a linguagem a fim de conquistarmos aquele resultado estético que nos pareça mais convincente? Como produzir uma história de personagens densos e com uma trajetória que não esteja agrilhoada às condições básicas e primordiais de existência? Como dotar de individualidade um neandertal? Como tornar único um caçador do paleolítico?

Os preconceitos que enxergam os povos primitivos como sendo protagonistas de uma eterna luta pela sobrevivência também estão em débito com as ciências humanas. Para tanto, é sempre recomendável a leitura do famoso texto de Marshall Sahlins, Primeira Sociedade da Afluência, disponibilizado gratuitamente na Internet.

“Se a economia é a ciência desoladora, o estudo de economias baseadas na caça e na coleta deve ser o seu ramo mais avançado. Quase todos os nossos manuais transmitem a ideia de uma vida muito dura no paleolítico, fazendo-nos indagar de como os caçadores conseguiam viver. Através destas páginas, o espectro da fome caça o caçador. Sua incompetência técnica traduz-se num esforço contínuo de trabalho pela sobrevivência, não lhe proporcionando nem descanso, nem excedente, nem mesmo, portanto, “lazer” para “construir cultura”. Apesar de todos os esforços, o caçador atinge os mais baixos níveis em termodinâmica – menos energia per capita por ano do que qualquer outro modo de produção. E em tratados de desenvolvimento econômico ele é condenado a apresentar mau exemplo expresso pela chamada “economia de subsistência”.

A sabedoria tradicional é sempre obstinada. É preciso opor-se a ela de maneira polêmica expressando, dialeticamente, as revisões necessárias. Na verdade, examinada de perto, a sociedade de caça/coleta é a primeira sociedade da afluência. Paradoxalmente, isso leva a outra conclusão útil e inesperada. Pelo senso comum, uma sociedade afluente é aquela em que todas as vontades materiais das pessoas são facilmente satisfeitas. Afirmar que os caçadores são afluentes é negar que a condição humana seja tragédia predestinada, com o homem prisioneiro de trabalho pesado caracterizado por uma disparidade perpétua entre vontades ilimitadas e meios insuficientes. Há duas formas possíveis de afluência. As necessidades podem ser “facilmente satisfeitas”, seja produzindo muito, seja desejando pouco. A concepção vulgar, de Galbraith, constrói hipóteses apropriadas particularmente à economia de mercado: as necessidades dos homens são grandes, para não dizer infinitas, enquanto seus meios são limitados, embora possam ser aperfeiçoados: assim, a lacuna entre meios e fins pode ser diminuída pela produtividade industrial, ao menos para que os produtos ou bens indispensáveis se tornem abundantes. Mas, há também uma concepção Zen da riqueza, partindo das premissas um pouco diferentes das nossas: que as necessidades humanas materiais são finitas e poucas, e os meios técnicos invariáveis mas, no conjunto, adequados. Adotando-se a estratégia Zen, pode-se usufruir de abundância sem paralelo – com baixo padrão de vida.

Penso eu que isso descreve os caçadores. E ajuda a explicar alguns de seus comportamentos econômicos mais curiosos: sua “prodigalidade”, por exemplo – a inclinação para consumirem de uma só vez todos os estoques disponíveis, como se lhes fossem dados. Livres da obsessão de escassez do mercado, as propensões da economia dos caçadores talvez se fundem mais consistentemente na abundancia do que as de nossa economia. Destut de Tracy, ainda que possa ter sido “o burguês doutrinário exagerado, de boa raça”, no mínimo corrabora a afirmação de Marx, de que “em nações pobres o povo não têm necessidades”, enquanto nas nações ricas , “ele geralmente é pobre”. Com isso não se quer negar que a uma economia pré-agricola funcione sob sérias limitações, mas somente insistir com bases nos dados sobre caçadores e coletores atuais, que na maioria das vezes, há adaptação bem sucedida”

[Disponível em: https://we.riseup.net/assets/231855/Marshall+Sahlins+Sociedade+afluente+original.pdf]

Assim, não seria absurdo concordar com a tese de que há uma profunda descontinuidade entre o nosso mundo e o mundo primitivo. Esse divórcio de uma relação que nunca houve, ou que jamais poderá ser reatada, leva em consideração uma série de problemas filosóficos: a fundação da sociedade civil, o nascimento da civilização e do Estado, o surgimento da propriedade privada. A escrita, o dado histórico que serve como marco para a separação dos períodos é apenas o último dos acontecimentos, mas é através dele que tentamos acessar outros mundos e outros passados.

Esse olhar perdido e melancólico, ao contrário do que parece, não é um ganho, mas uma derrota. A separação não se dá por meio da edificação das instituições, mas pelo mais puro esquecimento. Histórias que nos parecem velhas são ainda mais velhas e mais arquetípicas do que gostaríamos de imaginar. Há outras vias de acesso para o homem pré-histórico que não são aquelas já há tanto tempo descortinadas pela ciência. A psicologia dos sonhos, a magia, a oralidade – talvez esteja aí o manancial que nos religaria à humanidade não-civilizada, moradora de uma realidade anterior ao próprio tempo, adormecida em nossos instintos intrauterinos.

“A ideologia oficial das grandes civilizações, em todas as suas variedades, quer nos fazer acreditar que a história real e digna de menção não teria mais de quatro a cinco mil anos, e que a espécie essencial, na qual tendemos a nos incluir, surgiu da névoa justamente naquela época no Egito, Mesopotâmia, China e Índia. Naquele tempo apareceram escrivinhadores e escultores que pela primeira vez nos mostraram o que era o homem. Ecce Pharao, ecce homo – o homem não é mais antigo que a grande civilização, a verdadeira humanidade começando no seu apogeu. Talvez essa tese nunca tenha sido defendida expressis verbis de forma tão crua, mas em essência ela funciona toda vez que humanistas, teólogos, sociólogos e politólogos tem a palavra, a fim de modelar imagens coletivamente eficazes do ser humano. Todos eles fazem com que o “homem” já apareça a partir da cidade ou do Estado ou da nação, sem esquecer algo que seja conveniente para fixar a aparência de grande civilização nas cabeças dos aprendizes culturais. Em contrapartida nunca é demais insistir como sempre foi falso esse doutrinamento e como é funesto, ainda hoje, o seu efeito. A fixação pelas grandes civilizações é o proton pseudos, mentira básica e engano capital, não apenas da história e das humanities, mas também das ciências políticas e da psicologia. Ela destrói, pelo menos em última instância, a unidade da evolução humana e desliga a consciência atual da cadeia das inúmeras gerações humanas que elaboraram nossos “potenciais” genéticos e culturais. Ela ofusca a visão do acontecimento fundamental que se antecipa a toda grande civilização e do qual todos os chamados acontecimentos históricos só são derivações posteriores – o acontecimento global: antropogênese. A apologia atual da grande civilização abrevia a história da humanidade em mais de 95%, até 98% de sua duração real, a fim de ter liberdade para uma doutrinação ideológica e antropológica em alto grau – a doutrina, entendida como clássica e moderna, do homem como um “ser político”. Seu sentido é apresentar o homem a priori como um animal burguês que, para sua realização essencial, precisa de capitais, bibliotecas, catedrais, academias e representações diplomáticas. Onde quer que a ideologia da grande civilização se tenha estabelecido, apaga-se em cada qual a pré-história – como se cada novo indivíduo fosse um pobre selvagem que, tão rapidamente quanto possível, deve ser amadurecido para a vida em Estados. Se suspendermos a aniquilação da pré-história, então surgirão conhecimentos de uma condição de centenas de milhares de anos da humanidade, da qual só recentemente apareceram preocupantes desvios – desvios cujos efeitos se somam ao que Lévi-Strauss denominou história quente.”

Peter Slotjerdik [tradução de Claudia Cavalcanti; Estação Liberdade, 1999]

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