o mundo está ficando mais chato?

Habiéndose negado él al entendimiento y a la voluntad, le queda sólo el juego de la memoria: quando lo presente ya nada nos insinúa y lo futuro no tiene color delante de nuestros ojos, ¡bueno es dirigirlos a lo pasado, sí, allá, donde tan fácil es reconstruir las bellas y sepultadas islas de júbilo!

Leopoldo Marechal, Adán Buenosayres

É um dia nublado. O Imortal decide colocar sua cadeira de fio colorido trançado no passeio à frente da sua casa pra mó de contemplar melhor a vizinhança. Além da contemplação tranquila e desinteressada, há em sua pequena ação uma escolha consciente de cumprir também com este bem estabelecido ritual que há nas cidades interioranas.

O Imortal, sentado em seu trono, olha para o céu nublado – as nuvens que são o cérebro do deus Ymir. Algum tipo de conexão estabelece uma correspondência metafórica entre as informações que hoje são armazenadas em nuvens virtuais, a mente do Imortal, e o céu nublado que paira sobre a cidade.

Ele captura um pensamento que estava de passagem no trânsito à meia-altura. Um pensamento que, delineado e lapidado, consegue se expressar num enunciado bastante desconfortável: “o mundo está ficando mais chato.”

O Imortal se revira em seu pequeno trono, a cadeira de fio colorido trançado, e começa a meditar. Sem muita demora ele imerge num estado de absoluta calmaria enquanto em sua mente se desdobra a história da humanidade, seus capítulos mais belos e mais trágicos, onde não há vez para a banalidade. De olhos abertos ou não, o que se vê é a recordação que ele guarda de cada batalha, de cada romance heroico que naufragou no torvelinho dos tempos, de cada viagem longa feita de estranhas caravanas. Cada dança mística acontecida em salões secretos.

“O mundo está ficando mais chato” – uma afirmação tão taxativa muitas vezes se assenta na impressão de que certas liberdades foram perdidas, mas até então, O Imortal não havia pensado na chatice do mundo como consequência de uma simples (ou não tão simples assim) mudança de humor.

As piadas e o prazo de validade dos risos que provocam – isso é interessante. Já houve tempos em que o riso era um orgasmo que só funcionava alguns dias do ano.

E as gentes tinham que ir peregrinando atrás do riso.

O Imortal está interessado nessa erupção súbita de miragens e utopias que vivificaram em um passado que hoje é considerado obsoleto. Sua respiração calma obedece a um raciocínio, repetido por ele e por outros muito antes, que emitiram o tal enunciado em uma sentença mais branda, romântica, e também mais melancólica: “o mundo está perdendo seu encanto”.

A vida de um Imortal pode ser comparada a algum tipo inesgotável de colecionismo. Se não há a ameaça da morte iminente, a vida é dedicada à coleção de tudo: sabores, beijos, texturas, aromas, ideias, palavras, mitos, canções separadas por um intervalo de séculos que, ao soarem novamente nos ouvidos daqueles que já as ouviram, provocam neles uma sensação de paralisia e de perplexidade. “O mundo está ficando chato” é o convite para o tédio, o convite de uma turma que nesse parágrafo da humanidade foi capaz de entediar-se consigo mesma.

Dedicado à elaboração de uma Teoria da História que unifique sob a ordem de um único sentido todo o movimento browniano das gentes e dos tempos, o Imortal se sente até um tanto satisfeito em deparar-se com uma história da humanidade que seja feita apenas de declínio.

Em outras palavras, a história da humanidade é a história do declínio e do fim da truezeirisse.

Fugindo desse abismo morno e estéril, o Imortal arremessa sua mente para o passado, indo parar em Sunião, o promontório de Atenas onde Egeu atirou-se ao mar e para onde os escravos iam à procura de um refúgio longe das terríveis minas do Láurio.

Ele se recorda dos homens que liam a sorte dos reis nas entranhas dos animais.

Ele se recorda de Frinéia, a sacerdotisa de Afrodite, mais bela que Helena de Tróia ou que Scarlett Johansson. Mais bela que Veronica Franco e Grace Kelly.

Frinéia era tão bela que menções à sua nudez causavam comoção pública. Quantos jovens sortudos ela iniciou nas artes do Amor? Quando anunciaram que, próximo à estação, ela desfilaria nua em uma cerimônia para Poseidon, do alto do promontório até a praia, onde entraria na água para entregar seu corpo como oferenda ao deus dos oceanos, armou-se um grande evento e jovens de todos os cantos vieram testemunhar a sua beleza.

Tentaram imortalizá-la em esculturas, em quadros, em poemas, músicas, mas nunca nenhuma arte foi capaz de igualar ou de traduzir em suas formas aquele corpo, expressão máxima da generosidade da Natureza.

Quando acusada de impiedade, foi defendida por Hipérides, seu amante. Acusaram-na de ser desrespeitosa para com os deuses. Alegaram que seu comportamento era ofensivo à ordem e à moral. Levaram-na para ser julgada no Areópago, aos olhos e ao juízo de um conselho de homens feitos e livres – sedentos e medrosos.

Hipérides, ao perceber que as coisas ficariam ainda piores, e que Frinéia seria condenada ao exílio ou a qualquer punição ainda mais dura, não conseguia acreditar que o mundo permitira à mão insaciável da lei humana sacrificar a mais bela de suas criaturas. Num acesso dramático, retirou o véu que cobria sua amante, deixando-a nua diante do Areópago e provocando nos juízes uma reação escandalosa.

Ele agarrou os seios de sua amante e balançou-os diante do público que, embasbacado, não conseguia se conter.

– “Pois condenai-a agora!” – como nos versos daquele poeta Bilac.

Os murmúrios que foram ouvidos, o Imortal bem se lembra, zunido dos insetos diante do abismo. Hipérides gritava, provocando o público, clamando por piedade.

A beleza de Frinéia exerceu um poder sobrenatural sobre o Areópago. Decidiram anular a acusação, com medo de alguma justiça divina que pudesse se abater sobre aqueles tempos.

E de algum modo, há uma similaridade muito grande entre a cena em que Hipérides desnuda Frinéia, e aquela outra, cantada no Mahabharata, em que Draupadi, a mulher dos cinco irmãos pandavas, é desnudada diante da corte, mas em seu socorro intervém Khrishna, providenciando a ela as linhas de um tecido que nunca se esgota.

“O mundo está ficando mais chato”.

Entre os gregos há também o exemplo de Hipárquia, a filósofa cínica, vivendo à maneira dos cães com seu companheiro, Crates. Crates de Tebas e Hipárquia de Meroneia. Dois cuja alma era abrigo pra qualquer matilha. Renunciaram às suas posses, seus bens, e foram lamber as feridas, as suas e as dos seus, vivendo nas ruas.

Os predecessores dos santos, mais sábios que os sábios, satisfeitos em sua entrega a uma vida verdadeira, muito distante da moral dos homens.

Como cães, fazendo sexo em lugares públicos.

Mais radicais que qualquer Estado Islâmico.

O Imortal se recorda do comentário de um compadre, metido a filósofo, que vivia palreando e se pavoneando pelas escadarias e pelas ágoras. Um comentário condenando o esfrega-esfrega dos dois filósofos cínicos, aos olhos de todos, à luz do dia.

Dois doidões de BR surfando na onda de alguma coisa muito genuína, muito pioneira, original.

O lugar certo na hora certa. Aos olhos de todos, à luz do dia.

“O mundo está ficando mais chato”? O que os olhares e as câmeras deste pobre século em que estamos teria pra dizer sobre esses dois?

A mente do Imortal, feita de anacronismos indissolúveis, acaba se deslocando, no tempo e no espaço, e vai parar na região do Cáucaso, no século XII.

Sua memória, ainda viva e colorida, lhe apresenta a figura da Rainha Tamara, a Grande, descendente da valiosa casa dos bagrátidas. A bela e inesquecível Rainha dos Reis, que subiu ao trono da Geórgia com apenas 18 anos, logo após a morte de seu pai.

Aquela, que também caminhou entre os pobres e aprendeu com os mais velhos.

Casou-se com Yuri, o Príncipe de Novgorod, um traste que lhe rendeu mais problemas do que devia. Assim como alguns súditos que custavam a aceitar a ideia de serem governados por uma mulher, Yuri desafiou a Rainha após ter sido expulso de seu reino, e acabou sendo derrotado no campo de batalha, apenas para que a rainha se casasse depois com o mesmo general que havia liderado seus exércitos e derrotado o príncipe oportunista.

David Aslan era seu nome. O melhor general do reino.

A Rainha Tamara tinha o costume de se retirar para as montanhas, onde passava por grandes períodos de jejum e meditação, seus pés descalços pisando as pedras frias de uma caverna. O reino da Geórgia desfrutou sua época de exuberância e florescimento, a sua pequena Era de Ouro, na vida e nas artes. Suas fronteiras se ampliaram, e todos os seus súditos, convencidos do talento de sua Rainha, se ajoelharam em nobre reconhecimento.

Quando os muçulmanos invadiram deflagrou-se uma batalha sangrenta e imprevisível, até que fossem finalmente rechaçados pela cavalaria georgiana.

A Rainha Tamara, a Grande, foi coroada santa entre os santos.

Nos tempos de hoje em dia ela seria só mais uma lacradora da Internet. Uma diva.

Porque “o mundo está ficando mais chato”.

E se, ao perambularmos em uma cidade, encontrarmos fieis apinhados à escuta do sermão de um padre apocalíptico, como os sermões daquele padre entre os túmulos sinistros do Cemitério dos Inocentes? Todos escutavam, como se naquilo tudo testemunhassem o próprio fim dos tempos, eternamente adiado.

Não eram poucos os que choravam.

Mas com um replay que repetisse essa cena para sempre, transmitida para os telespectadores, é bem provável que a coisa ficasse bem mais chata. Os fieis se reúnem nas igrejas que pululam pelas esquinas, e o olhar deste nosso tempo não permite nada de legítimo ou de autêntico nos sucedâneos com os quais se depara.

É preciso reeducar o olhar das gentes deste tempo. É preciso ir além daquela sentença pungente do tal Carlos Marques, algo como as coisas se repetindo enquanto farsa, e o seu sentido se esvaziando…

“Não vos conformeis com este século” – e deveriam acrescentar: “nem com este, nem com nenhum outro!”.

A mente do Imortal navega pelos périplos, vai dar em praias onde náufragos são recolhidos por selvagens e levam vidas de reis, no meio da profundeza das florestas tropicais chuvosas, onde conservam alguma temerosidade a respeito do canibalismo.

Ele consegue localizar num passado próximo alguma sensação inédita. O fim da terra incognita, a perda da fronteira, o fim dos espaços, oceanos, selvas e geleiras virgens, continentes esperando por exploradores, o fim do mistério, tudo isso que é ao mesmo tempo a perda de algo infinito e o ganho de uma certeza que se arvora cada vez mais em procedimentos burocráticos e normas feitas de conveniência e conforto, as regras de convívio, os rituais de flerte e de cortejamento, os hábitos alimentares.

Filas de banco, estacionamentos desertos. Lava-rápidos.

Programas esportivos de mesa redonda.

As respostas prontas pra serem usadas em discussões.

Hoje não precisamos mais frequentar os estranhos jantares que Heródoto frequentou quando viajou e conheceu os citas e os sármatas.

Cuspir nas mãos de seus convidados antes deles iniciarem o banquete.

Ainda que seja possível perambularmos em bazares e mercados apinhados de gente, não seremos mais ludibriados por mercadores safardanas que nos poderiam vender elixires mágicos, antídotos contra todos os venenos, poções produzidas por alquimistas elusivos vistos apenas de relance no meio da multidão. Jamais compraremos por engano alguma relíquia religiosa que algum fiel jurou ser um pedaço de pano da roupa de Jesus. Compraremos gato por lebre tão somente se o caso envolver alguma ilusão política: o niilismo mais absoluto do senso-comum é capaz de confundir o mistério do nosso mundo atual com uma superficial cavilação dos poderosos.

E jamais o Imortal saberá o nome daquela estranha besta que servia de montaria pra um Xá que ele não mais encontrou.

Porque “o mundo está ficando mais chato” – e, olhando para esse retrocesso irreversível, o Imortal, em lapsos cada vez mais duradouros, começa a entender todo tipo de atividade humana como os movimentos das peças de um grande jogo, uma grande diversão, mesmo que ninguém estivesse se divertido ou dando risada na hora em que as coisas aconteciam . É ainda um tanto inadmissível que o mundo esteja ficando mais chato só porque algumas piadas perderam a graça.

Só porque, pelo peso da palavra, a disputa pelos significados tornou-se mais acirrada.

As caçadas na idade da pedra, os cogumelos ingeridos por algum xamã que dançou à luz de uma fogueira, as orgias coletivas feitas em ideal comunidade em épocas anteriores às dos profetas, o sacrifício de uma criança nascida com má formação, a dança de uma serpente ao som da flauta, as grandes navegações, os peregrinos do Mayflower, a carga de um pelotão de cavalaria, músicos virtuosos que conquistaram seu talento firmando um pacto com o Diabo em uma encruzilhada à meia-noite, a deriva continental, um duelo de floretes em meio a neblina, as migrações na polinésia, o acepipe dos nativos, as estradas incas, a pesca nos mares revoltos do norte, as idas e vindas de Haroldo Hardraada, a dança rodopiante dos dervixes persas, a barba em chamas do pirata Barba Negra, a capoeira jogada com uma navalha entre os dedos do pé numa clareira, a falcoaria dos povos das estepes, a batalha do Mbororé, a noite dos olhos de um bêbado que mira o mar e pensa em alguma coisa que se foi.

Ilhas voadoras.

Se o mundo ficou chato, é porque a plateia trocou de lugar com os atores.

Nunca, até hoje, as gentes tinham comentado tanto o mundo com o mundo. E o comentário acabou ganhando o primeiro plano.

Chegou antes do fato, a polêmica.

Eu já me entediava com o mundo back in the day. 

Desde que começamos a prestar atenção nele, no Mundo, a eterna recapitulação do passado tem multiplicado as galerias do museu. Uma vida feita de banalidade e tédio tem seu preço, mas pode redimir-se em uma cena, se quiser.

A impressão que se cultiva em certos canteiros.

O Imortal pára e pensa nas guerrilheiras curdas, nas montanhas, e em como os tiros de fuzil ecoam nessas paisagens desoladas.

Há muita truezeirisse por aí ainda.

Muitos bombeiros e carteiros fazendo seus serviços. Os meninos batendo bola na rua.

Muito dibrinho novo sendo inventado todo dia.

O mundo está chato praqueles que na vida só têm acesso ao comentário. Porque tornou-se ensurdecedor, um pouco, se for ver, o volume das vozes humanas. As toneladas de recomendações que vêm com elas.

A sensação de que só se fala a mesma coisa onde quer que se vá.

Se até mesmo as piadas duravam anos, séculos pra se firmarem na cultura… não duravam o átimo que duram entre os nautas. Não duravam o tanto que duram na mão desses pregos, esses larápios, biltres, sebosos, pilantras, esses cretinos, safados.

O heroísmo dos povos, circunstancial ou épico, não pode servir como paliativo para o tédio dos monólogos contemporâneos. Outro reino mais romântico que não o reino deste mundo.

Já ficou escuro enquanto o Imortal pensava. Escuro, e nublado ainda. Ele olhou para um inseto, caminhando em direção à lampada.

De primeiro, bem de primeiro, o fogo ainda espantava os bichos. O fogo, queimando a madeira, os afugentava. Hoje o fogo enlatado, engarrafado no vidro, atrai o bicho e o mata em luz maldita.

Procurando alguém em quem por a culpa, o Imortal diz:

– Esses burgueses, esses judeus, mercadores do templo, o diacho!

Pra então se levantar, esticar os cambito, recolher a cadeira, e ir dormir.

De chatice.

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