O texto a seguir consta em uma versão brasileira do Guia de Etiquetas e Civilidade para Cavalheiros, publicado em 1902. Originalmente voltado para os cavalheiros e damas da alta sociedade inglesa, o livro teve o anonimato de seu autor preservado até hoje.
Além das regras de tratamento voltadas para o convívio social, com instruções para os modos à mesa e para como prosseguir com diversos teores de conversação, precavendo o iniciado contra mudanças bruscas de assunto, o guia também chama atenção pela excentricidade com que versa sobre certos fenômenos bem peculiares, entre eles, a dormência nas pernas:
“Todo cavalheiro bem acostumado ao trato social, aos salões e ao palratório, já deve ter experimentado, e não apenas uma vez, a dita sensação de dormência que é capaz de, através da interrupção da circulação sanguínea e do bloqueio dos nervos, nos privar ou dificultar o movimento dos principais membros locomotores articulados.
Não costuma, contudo, ser frequente a aparição de circunstâncias em que seja aceitável ou ao menos possível ao cavalheiro sentar-se sobre os próprios membros sem que acabe incorrendo em posturas desmesuradas, de cara atarracada. No entanto, basta que o cavalheiro obstrua o fluxo de sangue que circula em direção ao membro escolhido, voluntariamente ou involuntariamente, sendo os braços, as mãos, ou as pernas, as áreas mais recomendadas, precisamente na faixa onde se dá a articulação dos apêndices.
Na maior parte das vezes o sucedâneo se dá de forma involuntária. A dormência costuma ser mais recorrente nos casos em que o cavalheiro não se dá conta de sua demora em mudar de postura ou de descruzar as pernas. Quando entediado ou sonolento, no caso de conversações mais monótonas e prolixas, recomenda-se redobrar a atenção. Mudar de postura a cada sete ou oito minutos parece ser o mais adequado.
A atitude deve ser executada com discrição. Não é recomendado que o cavalheiro em questão faça gestos muito rudes, mesmo que o formigamento posterior seja o maior dos incômodos. Tanto a dormência quanto o formigamento devem ser ocultados daqueles que se encontram presentes.
Portanto, o cavalheiro mais irreprochável procurará se distanciar ao máximo da conduta daqueles senhores que desastradamente procuram sair de tais estados como se estivessem correndo um enorme risco de vida, estabanadamente esbarrando na mobília ou nas desafortunadas damas que se encontram pelo caminho de seus tropeções enquanto ainda tentam segurar o chapéu no topo de suas cabeças.
Para os cavalheiros que, pela força do hábito, adquiriram gosto por tais estados, as fazeções de sala nos clubes de charuto e nas salas de jogos aparecem como ótimas oportunidades para desfrutá-los. Dentre as posturas mais disfarçadamente utilizadas, a posição tradicional de pernas cruzadas já deu demonstrações de ser bastante eficaz na produção da dormência. Para tanto, deve-se exercer uma pressão maior sobre as articulações. Usar roupas apertadas também funciona, mas deve-se cuidar de que o caimento não seja confundido com uma péssima demonstração de alfaitaria, e que as medidas não fiquem sufocantes..
Em espaços mais íntimos, alguns cavalheiros costumam utilizar a corda ou certos tipos macios de peso, recorrendo para tanto à ajuda de alguém que seja confiável e que saiba manipulá-los com a devida perícia. Os mais experientes nesta arte costumam ser muito claros a respeito do risco de lesões decorrentes de um maior tempo de exposição à dormência.
A apreciação dos estágios de dormência e formigamento é, neste sentido, dotada de uma qualidade ambígua. Ainda assim, qualquer julgamento de tipo moral sobre seus apreciadores deve ser evitado, a fim de que se resguarde uma maior amistosidade entre os convivas.
A necessidade social de preservarmos uma postura aceitável durante as conversações, jantares, cerimônias e outros ritos onde o fino trato e a etiqueta são sempre indispensáveis, exige que o cavalheiro não abandone a discrição, mesmo que notadamente se saiba de seu gosto e de seu voluntarismo diante das sensações de dormência e formigamento. Um verdadeiro cavalheiro jamais as tornarão públicas, por mais deleitosas que pareçam ser.”