a voz que vem das mãos

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“A língua deve ser introduzida e adquirida o mais cedo possível, senão seu desenvolvimento pode ser permanentemente retardado e prejudicado, com todos os problemas ligados à capacidade de ‘proposicionar’ mencionados por Hughlings-Jackson. No caso dos profundamente surdos, isso só pode ser feito por meio da língua de sinais. Portanto, a surdez deve ser diagnosticada o mais cedo possível. As crianças surdas precisam ser postas em contato primeiro com pessoas fluentes na língua de sinais, sejam seus pais, professores ou outros. Assim que a comunicação por sinais for apreendida – e ela pode ser fluente aos três anos de idade -, tudo então pode decorrer: livre intercurso de pensamento, livre fluxo de informações, aprendizado da leitura e escrita e, talvez, da fala. Não há indícios de que o uso de uma língua de sinais iniba a aquisição da fala. De fato, provavelmente ocorre o inverso.

Os surdos, sempre e em toda parte, foram vistos como ‘deficientes’ ou ‘inferiores’? Terão sempre sido alvo, deverão sempre ser alvo de discriminação e isolamento? É possível imaginar sua situação de outro modo? Que bom seria se houvesse um mundo onde ser surdo não importasse e no qual todos os surdos pudessem desfrutar uma total satisfação e integração! Um mundo no qual eles nem mesmo fossem vistos como ‘deficientes’ ou ‘surdos’.

Mundos como esse existem, sim, e existiram no passado, e um mundo desse tipo foi descrito no belo e fascinante livro de Nora Ellen Groce, Everyone here spoke Sign Language: hereditary deafness on Martha’s Vineyard. Devido a uma mutação, um gene recessivo posto em ação pela endogamia, uma forma de surdez hereditária vingou por 250 anos na ilha de Martha’s Vineyard, Massachusetts, a parti da chegada dos primeiros colonizadores surdos na década de 1690. Em meados do século XIX, quase não havia famílias na porção norte da ilha que não fossem afetadas e, em alguns povoados (Chilmark, West Tisbury), a incidência de surdez aumentara para uma em cada quatro pessoas. Em resposta a essa situação, toda a comunidade aprendeu a língua de sinais, havendo livre comunicação entre ouvintes e surdos. De fato, estes quase nunca eram vistos como ‘surdos’, e certamente não eram considerados de modo algum ‘deficientes’.

Nas surpreendentes entrevistas gravadas por Groce, os habitantes mais antigos da ilha falavam minuciosamente, em tom vívido e afetuoso, sobre velhos familiares, vizinhos e amigos, em geral sequer mencionando que eram surdos. E só quando essa pergunta específica era feita havia uma pausa, e então, ‘Agora que você mencionou, sim, Ebenezer era surdo e mudo’. Mas a surdo-mudez de Ebenezer nunca o isolara, quase nunca tinha sido notada como tal: ele fora considerado, era lembrado simplesmente como ‘Ebenezer’ – o amigo, o vizinho, o pescador do barco a remo e não como algum surdo-mudo específico, deficiente, excluído. Os surdos de Martha’s Vineyard amavam, casavam, ganhavam a vida, trabalhavam, pensavam, escreviam como todo mundo – não se diferenciavam em nenhum aspecto, exceto por serem, de um modo geral, mais instruídos do que seus vizinhos, pois praticamente todos os surdos da ilha iam estudar no Asilo Hartford – sendo com frequência vistos como os mais sagazes da comunidade.

Curiosamente, mesmo depois de o último ilhéu surdo ter morrido, em 1952, os habitantes ouvintes tenderam a preservar a língua de sinais entre si, não meramente para ocasiões especiais (contar piadas sujas, conversar na igreja, comunicar-se de um barco para outro etc.), mas de um modo geral. Passavam involuntariamente para essa linguagem, às vezes no meio de uma sentença, porque a língua de sinais é ‘natural’ para todos que a aprendem (como primeira língua), e possui beleza e excelência intrínsecas às vezes superiores às da fala.

O livro de Groce tocou-me tanto que, no momento em que o terminei, corri para o carro, levando apenas a escova de dentes, um gravador e uma câmera – eu tinha de ver aquela ilha encantada om meus próprios olhos. Constatei que alguns dos habitantes mais velhos ainda preservavam a língua de sinais e sentiam prazer em usá-la entre si. Meu primeiro testemunho desse fato foi verdadeiramente inesquecível. Fui de carro até o velho armazém de West Tisbury, num domingo de manhã, e vi meia dúzia de pessoas idosas batendo papo na varanda. Pareciam velhinhos comuns, vizinhos antigos proseando – até que de repente, de um modo muito surpreendente, todos passaram a usar a língua de sinais. Comunicaram-se assim por um minuto, riram e depois retomaram a conversa falada. Naquele momento eu soube que tinha ido ao lugar certo. E, conversando com uma das pessoas mais velhas do local, descobri outra coisa, muitíssimo interessante. Aquela senhora, na casa dos noventa mas esperta como só ela, às vezes mergulhava num sereno devaneio. Quando isso acontecia, poderia parecer que ela estava tricotando, com as mãos fazendo movimentos complexos e constantes. Mas sua filha, também usuária da língua de sinais, disse-me que a mãe não estava tricotando, e sim conversando consigo mesma, na língua de sinais. E mesmo dormindo, fui informado ainda, aquela senhora às vezes esboçava sinais fragmentários nas cobertas – estava sonhando na língua de sinais. Fenômenos como esses não podem ser vistos como meramente sociais. É evidente que, se uma pessoa aprendeu a língua de sinais como primeira língua, seu cérebro/mente a fixará, e a usará, pelo resto da vida, ainda que a audição e a fala sejam plenamente disponíveis e perfeitas. A língua de sinais, convenci-me então, era uma língua fundamental do cérebro.”

Oliver Sacks, Vendo Vozes: uma viagem ao mundo dos surdos [Companhia das Letras, 2015; tradução de Laura Teixeira Motta].


Imagem: Nancy Rourke

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