O Gênio – ele é grande e azul, e lembra o formato de um balão. O desenho de um pensamento.
Suas linhas fazem curvas fluídas e elegantes, seus contornos são claros e desobstruídos. Além disso, ele tem a capacidade de emoldurar outras personalidades em outras posturas, outros rostos, outras vozes.
Ele é simultâneo, e anacrônico, dois comportamentos impossíveis relacionados ao tempo do mundo – pontualidade e atraso, sincronia dessincronizada.
O pensamento, nada mais que pura informação, se está sempre na ponta da língua, não encontra dificuldades em se expressar. Assume, para tanto, milhares de fantasias, símbolos, cores e idiomas. O gênio, como não poderia deixar de ser, é genial.
E está preso num objeto: a lâmpada, item cuja função é iluminar. Iluminar é o efeito último da razão esclarecedora, força do pensamento. É a própria Razão (com R maiúsculo), pois é quem discerne, dentro do reino da genialidade, aquilo que é imaginação e aquilo que é conhecimento. Se uma ideia nos parece obscura, logo fazemos questão de esclarecê-la, iluminando seu sentido.
O Gênio, trancado num objeto cujo sentido é iluminar, concede três desejos àquele que for o portador do objeto.
O Gênio é um deus, um espírito da natureza, domado pelo feitiço de um sábio. Assim como Salomão, que domesticou os gênios do mundo antigo, e os empregou em inúmeras obras. Feiticeiros, alquimistas, bruxos, os gênios teriam oferecido a eles o que fossem capazes de desejar. Eis aí, o verdadeiro poder do gênio: a capacidade de realização. Mefistófeles, o demônio com quem Fausto contrai uma dívida, é movido pelas aspirações de seu gênio. O pacto fáustico move o intelecto rumo à ação, pela realização do gênio. O Gênio realiza, pois tem poderes para realizar o que quer que seja. A tecnologia e a civilização moderna nascem deste pacto. Que o Gênio da Disney seja histérico, extravagante, e tenha tantos recursos visuais para se expressar, é porque trata-se de um gênio pós-moderno, psicodélico e infantil – contemporâneo, pra ser mais exato. Na história de Aladdin, suas realizações envolvem forjar novas identidades/realidades para aqueles que as desejam. Tornar príncipe o ladrão.
O gênio interpretado por Robin Williams o mais genial de todos, é claro, em virtude do seu senso de humor. Caso perfeito em que se casam o papel e o intérprete. Um desenhado para o outro, porque o Gênio, nesta aparição, é principalmente um transformista, um comediante. Pela linguagem, o senso de humor o liberta de suas convenções. É um gênio projetado perfeitamente para a animação cinematográfica. Ele permite, até mesmo, a metalinguagem, e a quebra da quarta parede. Sua genialidade transborda para fora da credulidade, e faz referências ao próprio universo criado pela Walt Disney, extrapolando o território das Mil e Uma Noites em que o próprio cenário de Aladdin se baseia.
Mas há outras questões que também sublinham o caráter pós-moderno do Gênio naquilo que ele difere da história original, da qual a obra foi adaptada. Na versão antiga, não havia limite para os desejos, e tampouco o Gênio queria se libertar. De alguma forma, estas diferenças parecem substancialmente éticas. Desejos ilimitados criariam um problema para a sociedade; e a condição de servo a que o Gênio está submetido não parece mais tolerável para o heroísmo contemporâneo deste nosso Aladdin.
Voltemos à lâmpada. No meio de todo aquele tesouro, quem teria se importado com ela? E é ali que o Gênio está guardado. É a lâmpada o objeto mais valioso de todo aquele tesouro. Que o Gênio esteja ali escondido, isto remete ao verdadeiro significado da palavra jinn, que vem do árabe. Significa “escondido” – guardados dos sentidos humanos, ocultados na natureza. Aqui, o mais valioso dos tesouros. Aladdin esfrega a lâmpada. Sendo a lâmpada uma boa alegoria para a mente, isso quer dizer que Aladdin está coçando o raciocínio. Há beleza no fato de que, no passado, os sábios julgassem que a genialidade fosse algo externo a eles, e que ela lhes fosse concedida pela inspiração de um ser invisível que a soprou diretamente no coração, na alma, na mente.
No budismo tibetano, temos a tradição dos termas – tesouros escondidos. Trata-se de um fenômeno muito interessante, ao qual está atrelado o processo de expansão das tradições budistas. Foi o caso em que os mestres esconderam seus ensinamentos em objetos e lugares. Há relatos que contam sobre monges que, ao entrarem pra meditar em uma caverna, por exemplo, acessaram estes ensinamentos, e foram capazes de compilá-los em volumes. Chamamos de tertons aqueles que são capazes de acessar estes ensinamentos, posto que, obviamente, não é qualquer um que estaria capacitado para receber e a interpretar estas que seriam novas revelações sobre a doutrina religiosa.
Cito este caso para enriquecer a imaginação. A genialidade tem a ver com o que está oculto. Tem a ver com iluminar o que está oculto. Não é mesmo que justamente o primeiro pedido de Aladdin acabe por exigir ao Gênio que os leve pra fora da caverna em que se encontram, tal e qual aqueles que querem se libertar da ignorância, na alegoria de Platão?
E quanto aos gênios humanos da História, das Artes e da Ciência? É verdade que o culto à figura do gênio é um dispositivo bastante importante pro funcionamento da cultura, do letramento, da pedagogia. São exemplos de inventividade e de inquietações. Rendem biografias, e merecem todo tipo de questionamento. Sobretudo hoje, a capacidade da genialidade de sustentar um comportamento plenamente ético é algo que tem sido bastante questionado.
E como não poderia deixar de ser, o gênio constituiu-se enquanto uma categoria, um tipo social de efeitos antissociais: a excentricidade, o deslocamento, a incomunicabilidade. Em sua falsidade (em sua construção ideológica), foi duramente atacado pelas vanguardas históricas modernas.
Em se tratando do filme, a versão mais recente do Gênio, interpretada por Will Smith, tem seus méritos – principalmente porque o ator é dono de um carisma sobre-humano (e genial). Algumas piadas se repetem, os mesmos recursos visuais (agora executados pela computação digital), então temos mais efeitos especiais, e um volume maior de fantasias e figurantes – mas a essência é a mesma. Talvez a genialidade de Will Smith merecesse maior liberdade. Ainda assim, é o filme de maior bilheteria em sua carreira.
Ambos os gênios, o de Will Smith e o de Robin Williams, são premiados com a liberdade. Apesar da morte de Williams em condições absolutamente tristes e lamentáveis, sua performance imortalizou um gênio inspirador, e, pelo menos no plano da ficção, é um final verdadeiramente feliz este em que Aladdin pode libertá-lo. “Gênio, eu te liberto” – esta deveria ser filosofia máxima da vida de qualquer intelectual, curioso, cientista, filósofo, artista, aventureiro, viajante, amante. Acho que a liberdade do pensamento é a condição para a realização de muitos outros desejos.