carne de e.t


I prefer the time of insects to the time of stars.” – Wislawa Szymborska, ‘Nothing Twice’.

Enquanto caminha pelo parque num domingo ensolarado, Casemiro pensa no futuro.

Ao olhar para a maneira despreocupada com que os pais brincam com seus filhos, todos portando sorrisos em seus rostos, quentes como o calor que faz naquele dia, ele imagina um futuro diferente, sombrio, impessoal, cheio de rancor, ressentimento, tédio e desespero. Contemplando um casal de namorados trocando carícias em um banco só para os dois, Casemiro é preenchido por uma certeza cada vez mais cabal de que, neste futuro que começa a tomar forma em sua mente, a vida terrestre será uma sucessão de tragédias monótonas e asquerosas, bem diferentes daquele cenário que ele tem no momento à sua volta.

Pensando no filho que ainda não tem com uma mulher que ainda não conhece, Casemiro é capaz de cogitar profissões e carreiras que só existem neste futuro – este outro mundo em que a humanidade, como uma praga, cobriu o manto do planeta com uma malha urbana cinzenta, unificada e superpopulosa. Ele imagina ocupações que existem como verdadeiras torturas para os indivíduos que as detém e para os fundos que as sustentam, atividades tornadas realidade apenas pelo grau cada vez mais complexo da cadeia de interdependência sobre a qual se assentam as relações humanas, algo que impede que tais ocupações sejam descartadas, como se a necessidade de tais serviços fosse diretamente proporcional à maneira com que eles existem apenas para massacrar os indivíduos com requintes de crueldade tão sofisticados quanto aqueles das danações mitológicas gregas.

E também porque Sísifo, Prometeu e Tântalo eram homens, e para que a sua condenação seja a mais completa, o filho de Casemiro deverá também ser um homem, e não uma mulher.

Casemiro enxerga nesta outra Terra o sucesso da aventura espacial como uma espécie de compensação emocional para a distopia coletiva em que vivem as gentes deste tempo. Seu filho, provavelmente tão mau sucedido quanto ele nas escolhas profissionais que terá feito, é um tipo muito específico de astronauta. Seu filho trabalha como funcionário numa grande companhia alimentícia que tem seus principais centros de produção localizados na órbita do planeta Terra e de Marte.

Num futuro em que tornou-se impossível cultivar ou criar qualquer tipo de vida, vegetal ou animal, fora dos ambientes citadinos, posto que não há mais florestas, nem campos, nem rios, nem mares, nem qualquer outro horizonte que não seja a silhueta dos arranha-céus, nenhuma variação de biomas ou de ecossistemas, todos destruídos, a humanidade adequou-se a um mesmo e homogêneo tipo de rotina artificial, de paisagem invariável, e sustentada por uma dieta rica em fibras. O consumo de carne bovina ou suína é um verdadeiro luxo, e extremamente caro, os animais criados sempre em cubículos, sempre causando comoção e ataques de histeria entre aqueles que não aprovam o sacrifício.

A única fonte de proteína para a alimentação humana está no consumo de insetos dos mais variados tipos, criados em gigantescas naves-silo que ficam orbitando os dois planetas do sistema solar.

O filho de Casemiro é um dos funcionários responsáveis pela criação dos insetos, capitão e único tripulante de uma nave-silo-arca colossal.

Seu salário é quadruplicado pelo adicional de insalubridade.

Seu vale-alimentação é inesgotável.

Ele tira férias a cada dois anos.

Sua mulher e filhos (netos de Casemiro) sentem saudades, e comunicam-se com ele em web-conferências.

Seu uniforme de trabalho é imaginado por Casemiro como a mistura de um escafandro com um traje de astronauta e a roupa de um apicultor.

Não há vegetarianos no futuro.

Casemiro cogita que seu filho deverá ter prestado algum concurso muito concorrido pra conseguir o tal emprego, mas que a boa remuneração não compensa o cotidiano nojento e insólito que o aguarda. Sua casa é seu ambiente de trabalho. E ele é um dos mais capacitados da companhia.

Casemiro sabe que o consumo de insetos, a entomofagia, é hoje uma realidade um pouco distante dos estômagos ocidentais. Gosta de crer que a adoção destas que até hoje são consideradas pelo seu paladar como apenas iguarias não se deve a outra coisa senão a uma fortuita coincidência histórica. Ainda que se coma insetos acidentalmente na forma de corantes ou de fragmentos acidentais nos hambúrgueres de pior qualidade, ou que ainda haja uma grande semelhança entre os camarões e as baratas, inclusive no sabor, ou que proporcionalmente a oferta de proteínas garantida pelos insetos seja bem maior do que aquela encontrada nos mamíferos, ou que o asco seja apenas um atributo cultural fácil de ser desconstruído, a hipótese real de ele vir a um dia desfrutar de uma bruschetta de tenébrios ou de um patê de larvas lhe parece muito distante, residindo mesmo só nesta outra vida imaginária.

Casemiro, no entanto, sempre quis provar a farofa de formiga içá, e pensa nas receitas futuras que a futura mulher de seu filho futuro deverá saber fazer no futuro.

Casemiro leu, certa vez, o relato de um sertanista que narrou o encontro de um oficial do Serviço de Proteção aos Índios, e o chefe de alguma tribo indígena selvagem do interior do Brasil. Ele recorda-se que na ocasião deu-se um banquete, em que o cacique aproveitou para oferecer um cesto de gafanhotos para o militar, quem, por sua vez, após experimentar o petisco e disfarçar o contentamento, retirou da mochila uma lata de bolachas de maisena que deu para o índio.

O índio nem terminou de comer a bolacha e já cuspiu todo o farelo, reprovando o sabor do produto. Admirado com a lata, contudo, resolveu jogar fora todas bolachas pra depois preencher o conteúdo do recipiente com o máximo de gafanhotos que conseguiu, daí então aposentando o cesto.

O relato diz respeito não só à dieta dos povos, mas também aos objetos em que vem servida a nossa comida, ou onde ela pode ser armazenada. Os índios sempre dedicaram atenção especial às latas de alumínio, bem mais do que às bolachas de maisena.

Casemiro pensa que o filho de Casemiro, todo dia, terá de lidar com o barulho infernal de bilhões de insetos voando incessantemente em áreas que são como grandes estádios de futebol cobertos, formando grandes globos sólidos de insetos, as áreas mais densas flutuando à deriva da gravidade zero, ajuntando-se em colônias, galerias de cupins. Ele será um ser humano solitário ali, obscurecido pelo mar de artrópodes, navegando com baixa visibilidade. Se todos os insetos resolvessem atacá-lo de uma vez, não sobraria nada. Os gritos não são ouvidos por mais ninguém, porque todo o restante do trabalho é feito por máquinas. Ao filho de Casemiro só cabe operá-las, supervisionar, e fazer a manutenção. Da única janela da nave, um minúsculo retângulo de 25cm x 40cm, ele observa o ocaso sideral sempre no mesmo horário.

Nos momentos de maior solidão o filho de Casemiro tenta se excitar buscando estímulos em vídeos pornôs transmitidos numa qualidade de banda baixíssima, tendo de, para tanto, burlar o sistema de bloqueio do provedor local fornecido pela própria companhia. As ondas de rádio, apesar de não encontrarem resistência no vácuo, possibilitam quando muito taxas de download irritantemente lentas até mesmo para os padrões de hoje.

Ou então o filho de Casemiro se entorpece com as drogas pesadas que são distribuídas clandestinamente pelos contrabandistas espaciais.

E assim se sucede em todas as outras infinitas naves-silo, que orbitam e transitam entre a Terra e Marte, com todos os outros futuros filhos de Casemiros, solitários sempre tementes em relação à possibilidade do despertar da consciência insetóide.

A humanidade, pouco depois de absorver e engordar com os insetos, desenvolverá a tecnologia do terraforming, e seremos capazes de moldar a atmosfera e o terreno de Marte, tornando-o habitável. Deixaremos verde o Planeta Vermelho. O processo será registrado com belíssimas fotos em alta resolução de tratores pantagruélicos e escavadeiras intermináveis movendo porções continentais de terra e adubo.

Então criaremos por lá grandes florestas virgens, campos e prados imensos onde saltam e correm manadas de criaturas que tinham passado a existir só nos livros e nos bancos de armazenamento genético, semearemos rios velozes jamais poluídos e sempre cristalinos, cheios de peixe e vida, plantaremos desfiladeiros de cachoeiras imperturbáveis cuja força seria suficiente pra desafiar as leis da gravidade, mares profundos e escuros como o espaço que refletem, e todo esse paraíso permanecerá vedado aos que não nascerem nele.

Porque era pra ser um passeio bem tranquilo.


Imagem: Jessica Palmer

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