a lealdade

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A história, entre a hipótese e a ficção, deve começar com um grupo de caçadores, distantes de nós por pelo menos trezentos séculos, encontrando uma ninhada de filhotes de lobos. Aqueles que deveriam ser os pais jaziam mortos ainda ao lado, um grande lobo cinza, maior, de dentes terríveis e de pelagem farta, ele atravessado com a lança de um dos caçadores, e a loba, caída ao lado dele, com os seios cheios de leite e o focinho destroçado por uma pedrada.

Alguém tem a ideia de recolher os filhotes. Não matá-los. Por empatia? O caçador lembrou-se de uma das crianças, um dos novos bebês da tribo, a quem deu ao mundo sua mulher. Impediu, com um grito, que os outros caçadores derramassem qualquer sangue novo. E tendo esse grupo de caçadores regressado à tribo, que destino teriam dado aos filhotes dos lobos?

Teriam as consequências dessa história de amizade uma beleza tão grande quanto aquele que deve ter sido o seu começo? Até então estávamos acostumados a entender as matilhas como ameaças, eternos concorrentes na disputa pelos alimentos. Essa também pode ter sido uma das aproximações iniciais: a domesticação pelo estômago. Os cães mais hostis, menos dóceis, serão utilizados para a guarda, e impedidos de se reproduzirem. Mas para que isso acontecesse, os filhotes já deveriam ter crescido e atacado alguém da aldeia, talvez uma criança, um alvo sempre menor que o próprio bicho.

E com o que iremos alimentá-los? Com os restos negados pela tradição, que há muito já superou a fome. Pois que se ainda houvesse fome, teríamos comido os próprios lobos. Daremos a ele as partes menos interessantes dos animais que caçamos. Será necessário observar o bicho, vê-lo crescer amarrado, preso em algum lugar. Estando sendo observado, observará também, e pode ser que em algum momento, o homem perceba que o lobo será útil se prestar auxílio em nossas caçadas. Andaremos juntos. A maneira com que cheira, com que enxerga, com que fica em alerta, é como se compartilhássemos com ele uma natureza caçadora, algo que outros animais, mais solitários, como os grandes felinos, também parecem ter, mas de um modo bem distinto. Com um latido avisarão a tribo toda quando está de noite e algum barulho estranho vem chegando perto. Com o nariz apontado e o rabo esticado, em direção ao movimento que a vegetação à frente fez, avisará o grupo de caçadores que fecha o perímetro sobre o alvo. 

Tudo deverá ser domesticado, as plantas, os bisões, a natureza toda, e cada adequação social dada à natureza de cada bicho ou planta deverá fazer brotar em nós outras várias naturezas, mais profundas e menos imediatas do que aquela despertada pela fome. E da natureza dada pelo lobo, cão selvagem, nascerá um cão mais dócil, mais leal. Os cães poderão guardar os rebanhos, os tesouros de nossos inimigos. As nossas terras. Comerão a carniça e serão os guardiões da morte.

Alguém, porventura, irá se perguntar, em certa altura, o que pensa e com o que sonha aquele cão que o acompanha nas caçadas, aquele cão que, quando você ainda era criança, já era ele bem mais velho. Pertencerá aos mitos, e fará parte dos mapas, o céu noturno em que os lugares levam nomes de constelação. O cão Sirius, que segue o caçador Órion.

Tomarão parte nos rituais.

Quando vierem as cidades, viverão pelas ruas, com os mais pobres, os cães que também forem mais pobres, cães rejeitados desde o berço, aceitos pela indiferença desta também outra natureza que povoou os cantos da cidade, espaço ainda estranho, cães estes muito diferentes daquelas matilhas mais abastadas, que os chefes e poderosos levam nas suas prestigiosas coleiras. Eles vão entre as casas e as muralhas, revirando restos, corpos, o lixo, fugindo daqueles ainda mais famintos do que eles, famintos o bastante pra que queiram matá-los na dentada. E são homens, os que tentam, os que estão mais famintos. Os bichos vão invadindo galinheiros alheios, rebanhos alheios. Morrem para saciar a fome, mesmo quando ninguém lhes coma a carne. Em defesa da outra carne, a do rebanho, de porcos, bem mais interessante que a carne suja e magra do cão que perambula, os senhores ferem os bichos e admoestam os seus vizinhos.

Porque o cão, quando é um problema, é sempre um problema de vizinhança.

Daremos a eles comida e cuidado, e entenderemos que não importa muito se somos ou não somos semelhantes. O animal defenderá aquele que o alimenta – o homem – e não aquele com quem se assemelha – outro cão ou lobo.

Guardarão a entrada dos templos, cães austeros, de semblante fino, semelhantes aos chacais, talvez também como os chacais. À noite ouviremos uivos, e perceberemos que, para os cães, os uivos são tão contagiosos quanto para nós são os bocejos. Contaremos histórias sobre homens que vivem em horizontes distantes, e que possuem cabeças de cachorro, e que, assim como o animal, também rosnam e latem, e desafiam uns aos outros olhando diretamente no olho. Séculos depois eles receberão o nome de cinocéfalos. Séculos depois dos séculos, saberemos que eram apenas lendas.

O xamã da tribo, ele é capaz de transformar-se em lobo, e suas presas e sua boca manchada de sangue, a grosso couro obscuro sob o abrigo de peles, parecem guardar uma evidência disso. Caminhando pelos desertos gelados, tendo acesso ao mundo dos espíritos, com a ajuda das ervas, dos cogumelos, da linguagem exata das palavras de comando, o xamã reuniu-se com a matilha ancestral. Os rostos eram familiares, e todos pareciam já se conhecer muito antes de terem estado ali. Em tudo há um espírito. Tudo parece querer falar, saltar para fora e para longe das formas que na natureza se encontram.

Mas o homem separou-se da natureza. A comunicação foi cortada. Alegorias, simbolismos, lendas, mitos, nos lugares mais distantes da Terra podemos encontrar analogias que nos digam a mesma coisa. O mito edênico, ou o mito dos marubo. Tínhamos acesso a um mundo do qual fazíamos parte, onde mergulhávamos sem que nada nos distinguisse das outras formas que habitavam ali. Só que depois que a comunicação é cortada, depois que a Terra deixa de falar, é o homem quem se torna eloquente, verborrágico e tagarela, ao querer nomear as coisas do mundo.

Vieram os filósofos, brotaram desta fratura aberta entre o homem e a natureza, e os mais sábios dentre eles acharam por bem imitar os cães. Kýon. À maneira dos cães, como teriam relatado aqueles que viram os filósofos cínicos perambulando pelas ruas, lambendo as feridas uns dos outros, fazendo sexo e masturbando-se em público, sem obrigações morais humanas, que estas só valem para nos deixar bem longe dessa natureza mais simples, mais feliz, mais satisfeita, mais canina. Viram no bicho um modelo exemplar de conduta. Não é possível compreender, em nossa época, o grau de sapiência de que deveria dispor um ateniense para querer viver como os cães e na companhia deles.

Solitários durante o dia, acompanhados durante a noite. Os cães, como os rebanhos, como a terra, como até mesmo outros homens, os escravos, semelhante a toda essa ordem que a civilização quis imprimir na história, os novos lobos também teriam donos, e é da garantia desta propriedade que o cão aprendeu a pastorear, caçar, e defender. E também a correr, tendo com isso aprendido também a despertar o interesse e a alimentar a ganância dos apostadores. Pois que aí ele deve ter absorvido alguma coisa das regras humanas. Há, por exemplo, aqueles quadros em que famílias de lordes britânicos saem para caçar com duzentos beagles. Aprenderão truques, acompanharão os mágicos e serão vistos em circos. 

Os cães também participarão da aventura colonial, e da exploração do Novo Mundo. Alguns se embrenharão nas matas sem jamais regressar. E então, durante séculos, exploradores, sertanistas, as missões pacificadoras, as companhias de telégrafo, o Serviço de Proteção aos Índios, abrindo caminho na mata fechada e no cerrado, penetrando o interior do Brasil, desbravando as profundezas sob o ritmo das marchas, encontrarão os cães na companhia dos índios, a quem se afeiçoaram muito mais do que os gatos.

E sempre que o homem quis provar para si mesmo que era grande, esteve acompanhado de um cão. Pois que foi por isso que mandaram uma cadela ao espaço.

O número 5 no jogo do bicho. Um lobo-guará morto na estrada, perto do Desemboque, teve seus olhos retirados. Alguém diz que os olhos de lobo-guará são comercializados na região porque significam boa sorte. E há até encomendas para isso. Superstição, superstitio, superfície. Mas o cão doméstico, este cão que habita os espaços privados, é uma consequência um tanto mórbida. Filhotes, por que são tão apertáveis? Agora os novos animais latiam apenas de dentro das casas. Estão assistindo aos seus heróis caninos na TV. Eles vêm e estacionam do seu lado abanando o rabinho e pedindo pra que você o acaricie em lugares estratégicos. A fofura enquanto ganho evolutivo só funciona em certos ambientes, nos quais a empatia depende do quão fofo e meigo vem a ser o bicho. Assim como o gato, os hamsters, os coelhos. Um atributo que conseguimos despertar, tanto em nós quanto neles, em todos esses anos de seleção artificial, mas que agora se encontra plenamente articulado à nossa cultura. A amizade, a família. Tivemos trinta mil anos de domesticação. O que dizer dos próximos cinco milhões de anos? Há cães para todos os dias e horários. Aprenderam a atravessar a rua, a esperar o semáforo fechar. O lugar no sofá conquistado por alguns espécimes, essa posição colada ao corpo que ali se senta e que funciona quase como um apoio para a própria mão, um quente apoio à procura de carinho, como se o cão estivesse agora também se adoentando com as mesmas doenças que nos afligem, em que outra espécie ainda estranha irá dar essa criatura? Encurtará as patas, adaptará a dentição à textura da ração? Tornar-se-á uma almofada viva? Telepatia, ou uma evolução inevitável que hoje em dia se expressa nesse comportamento diferente que eles demonstram ter momentos antes da morte (algo que os elefantes também parecem ter)? Será uma espécie depressiva, niilista, ou, o contrário disso, seres fortes, de ânimo inesgotável, uma fonte ininterrupta de vontade que nos servirá pra sempre de inspiração?

 


Imagem: Whyn Lewis.

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