abençoados sejam os discípulos de mahavira

Ao contrário da atenção que a cultura brasileira tem dado ao budismo e ao hinduísmo nas últimas décadas, pouco ou quase nada até hoje já foi dito sobre os jainas neste mesmo território nacional. Também pudera, diferentemente das outras tradições espirituais provenientes da Índia, o jainismo, em virtude do seu ascetismo radical, encontrou poucas chances para transpor as fronteiras do país onde foi primeiramente difundido. Nos século XX e XXI, contudo, pequenas comunidades se fixaram em países como Estados Unidos e Inglaterra, ao passo que a maior parte dos seus devotos permanece na Ásia e somam na atualidade 6 milhões de indivíduos. Este pequeno artigo é uma tentativa de apresentar, para o público leitor brasileiro, uma brevíssima narrativa daquele que é considerado o seu fundador histórico, e um resumo um tanto sintético das principais ideias filosóficas e espirituais desta tradição religiosa.

Atribui-se a fundação histórica do jainismo a um sujeito chamado Mahavira (540 a 468 a.C.), que teria vivido na região de Magadha, por volta do século VI a.C., sendo, de fato, um contemporâneo de Sidarta Gautama, o Buda. Na verdade, tanto Gautama quanto Mahavira (tampouco era este o seu nome de berço), pertenciam a um mesmo contexto de buscadores espirituais denominado śramaṇa – movimento mais ou menos contracultural gestado do lado de fora da cultura védica e que se opunha a inúmeros princípios do bramanismo, tais como, por exemplo, a estrutura das castas sociais.

Dizemos que Mahavira é o “fundador histórico” desta religião porque ele mesmo afirmava não ter “inventado” ou “criado” nenhum daqueles princípios que professava e que ensinava aos seus discípulos. Em tese, Mahavira teria sido o vigésimo quarto tirthankara, ou seja, apenas o último numa longa e eterna fila de sábios que teriam descoberto um caminho universal de libertação. Com exceção do vigésimo terceiro destes sábios, o predecessor de Mahavira, não há quaisquer evidências históricas dos outros vinte e dois (nonde se inclui uma mulher, apenas). Todavia, sequer seria possível encontrar estas evidências, posto que uma tal sequência de sábios se prolongaria até um passado infinito de ciclos cósmicos anteriores ao atual. Como se vê, esta não é uma novidade, ou uma situação inédita na história das religiões – também Lao Zi, a quem é atribuído o Tao Te Ching, alegava ter apenas descoberto um princípio espiritual do qual outros sábios anteriores a ele também tinham conhecimento.

Mahavira, um pouco mais velho do que Sidarta Gautama, era também membro da casta dos guerreiros. Assim como o Buda, teria “abandonado” sua casa e sua família para seguir um caminho estritamente espiritual. Conta-se que o desapego e a maturidade espiritual de Mahavira eram tão grandes que, num determinado momento de sua jornada, ele perdeu suas roupas sem nem ter se dado conta, tendo continuado assim até o fim da vida. Por estas razões, e pelas gerações seguintes, conforme seu ciclo de discípulos se ampliou, os gregos se referiam aos membros e representantes deste jainismo primitivo como gimnosofistas, ou, “os sábios nus”, com quem até mesmo Alexandre, o Grande teria tido um memorável encontro – propondo dilemas e charadas a estes sábios, como assim relata Plutarco.

O contexto social do qual faziam parte compreendia uma tal busca – fazia sentido que os indivíduos se retirassem da vida cotidiana tradicional para perseguirem uma meta espiritual que almejasse a liberdade. Grande parte deste movimento se desenvolveu, como já foi dito, em oposição a autoridade espiritual da casta dos brâmanes, que monopolizavam os ritos religiosos a partir do domínio do sânscrito e do controle sobre os livros sagrados. Sabemos, por outro lado, que a presença fecunda de inúmeros indivíduos provenientes da casta dos guerreiros, os ksatrya, teria fertilizado o movimento destes buscadores com toda uma linguagem militar. Daí provém o próprio termo jina, que quer dizer “conquistador”. Não apenas a linguagem, mas também toda uma disciplina corporal, assim como uma estrutura de grupo que mimetizava as ordens militares, acabou por servir de fundamento a este movimento que encontrava nas florestas, e sempre na companhia de outros homens que buscavam as mesmas coisas, o seu espaço vital.

Mas o que podia ser conquistado naquele contexto? Ora, precisamente a realização espiritual que estes indivíduos se punham a perseguir: a libertação do espírito, o fim do sofrimento. Assim como o budismo, a meta dos jainas também é o nirvana, e portanto, a religião compartilha de alguns conceitos muito caros à cultura hindu: dharma, karma e samsara são alguns deles. Por estes motivos, é também considerada uma religião dármica – porque compreende, nas suas formulações, um caminho espiritual correto que se harmoniza com uma ordem natural que sustenta o universo. Outrossim, uma preocupação fundamental para a prática destes indivíduos seria a interrupção do afluxo de karma, bem como a libertação do ciclo de renascimentos do samsara. Um monge que aderisse a este caminho teria de fazer os seguintes votos: ahimsa (não-violência); satya (dizer a verdade); asteya (não roubar); brahmacarya (castidade) e aparigraha (desapego).

Em se tratando de sua cosmologia, o jainismo é, contudo, uma religião dualista. Não dispõe de uma perspectiva monista tal e qual o Advaita Vedanta ou o budismo. Sua filosofia pressupõe a existência de uma realidade espiritual pura, jiva, que é a alma, e uma realidade material, ajiva, que carece de todos os atributos dos quais a alma dispõe: infinitude, perfeição, ausência de qualidades, liberdade etc. O universo se configura a partir de um entrelaçamento destas duas instâncias, um processo pelo qual jiva progressivamente se contamina com ajiva, ensejando vida e sofrimento num ciclo de eterna repetição.

Para os jainas o universo não teve início e não terá fim. É infrutífero procurar pela sua causa original. Aliás, eis aí uma ideia que reverbera certos princípios já aventados pela filosofia Samkhya: o universo é resultado de uma pluralidade de causas. Não existe uma substância original que atravesse a realidade, tal como o brahman – cada indivíduo é uma substância própria que não se integrará numa síntese final. Trata-se, portanto, e para além do dualismo cosmológico, de uma pluralidade ontológica radical: o universo fenomênico não é resultado de uma cadeia lógico-causal decorrente de um único e mesmo princípio fundamental, um primeiro motor tal como Aristóteles e Santo Agostinho estavam dispostos a considerar. O universo é infinito, e suas causas são infinitas. Todas as coisas as coisas são caracterizadas pelo nascimento, duração, e perecimento. E o indivíduo, no meio disso tudo, vive muitas vidas em muitas formas diferentes – progredindo da planta ao animal e, daí pra frente, sabe-se lá sob quais outras modalidades que nos são desconhecidas.

Deste modo, também não interessa aos jainas a existência de deuses e demais divindades. Sendo impossível responder qualquer pergunta acerca de uma tal existência, o jainismo prefere abdicar da adoração e devoção aos deuses, adotando uma postura pragmaticamente agnóstica. Nos fascinantes templos erigidos pela religião por toda a Índia, não há imagens de divindades às quais a comunidade deva prestar oferendas ou alguma ordem de devoção. Encontramos ali referências dirigidas apenas à figura de Mahavira ou dos tirthankaras. Mas estes jinas não são adorados nem cultuados, apenas reverenciados como mestres que indicaram para a humanidade um caminho verdadeiro. Há, neste sentido, um entendimento crucial de que a devoção institui poder, e poder gera violência, e as duas coisas juntas produzem karma.

Se não podemos afirmar nada sobre os deuses, o que é que, então, nos traz a esta existência contemporânea? A relação entre alma e matéria, um progressivo adensamento do espírito provocado pelo desejo, ignorância, apego e paixões. O caminho da libertação da alma, para os jainas, é muito semelhante ao dos budistas, porque envolve a renúncia ao desejo e o exercício contínuo do desapego. A diferença, para além das questões filosóficas, se dá no grau com que isso é levado adiante, sendo muito mais radical no caso jaina do que no caso budista.

Agora, é necessário um certo esclarecimento quanto ao uso do termo “radical”. Diferentemente daquilo que é propagado pela mídia quando se trata das questões políticas do mundo islâmico, a radicalidade do caminho jaina não se deve a algum tipo de extremismo ou fanatismo. Como se verá mais adiante, aliás, este é um tema importante para as noções filosóficas desta tradição. A radicalidade, portanto, diz respeito à intensidade com que a prática do ascetismo é levada adiante, e da seriedade com que certos temas, como a não-violência, é tratada pelos membros deste grupo religioso.

Quando se fala de não-violência, estamos nos referindo, é claro, a um princípio bastante fundamental à prática do yoga, da qual os jainas também são adeptos, e que leva o nome de ahimsa. Este princípio possui uma centralidade no jainismo muito maior do que em qualquer outra religião da Índia ou da Ásia. Poder-se-ia dizer, afinal, que o jainismo é a religião mais pacifista do mundo. Ora, o conceito de não-violência difundido pelos jainas se estende por todas as formas de vida, nisto incluindo até mesmo os menores seres. A dieta deste povo é, diante disso, necessariamente vegetariana. Noções de ecologia e de vida microscópica já podem ser encontradas nos textos mais antigos produzidos por esta tradição espiritual, muito antes de qualquer ideia ser aventada no ocidente, a milênios de distância da invenção do microscópio. Abrigos de animais e formas menos agressivas de cultivo, por exemplo, são serviços e práticas levados adiante pela comunidade dos leigos, o círculo mais abrangente de membros que não segue uma prática ascética tão radical quanto a dos monges.

E por que a não-violência é tão importante assim? Porque ela produz karma. E o karma, como é resultado do entrelaçamento entre alma e matéria, é, portanto, material. Muito diferentemente do budismo e das formulações hindus que constam na literatura do Bhagavad-Gita, por exemplo, sendo material, o karma não depende de nossa intenção. Pois sim: não importa muito para um hindu se ele acidentalmente matar um animal, posto que a intenção do assassinato não se formulou na sua mente – assim como também se aplica aos budistas, cuja ontologia sempre aponta para as formas mentais como causadoras do karma. No caso jaina, pouco importa a intenção de um indivíduo. E isto, de certa forma, faz algum sentido. Imaginemos, então, uma floresta que se incendeia pondo fim a todo um ecossistema. A intenção modifica de algum modo as consequências do evento? É claro que não. O mundo material progride desordenadamente, e os efeitos deste acontecimento para aqueles que foram afetados seriam, talvez, indeléveis. A violência, portanto, mesmo que não intencional, impedida pelo ahimsa, produz o pior dos karmas. E o karma acentua a relação entre alma e matéria. Neste sentido, a não-violência é mais importante, inclusive, do que a própria verdade. É preferível mentir quando se trata de salvar a vida de alguém ou de algum animal. Para os monges, a coisa é levada a um nível tão profundo, que é preferível morrer do que atentar contra a vida de um outro ser senciente.

Como isto se expressa na prática de diferentes linhagens de monges jainistas? Na linhagem Svetambara, por exemplo, os monges utilizam máscaras que lhes impedem de engolir insetos acidentalmente. Os Digambara, por sua vez, não acendem fogo e nem cozinham seu alimento, e com isso evitam a morte dos seres microscópicos. Cabe à comunidade dos leigos preparar os alimentos para estes ascetas radicais. No caso dos Digambara, eles não possuem quaisquer pertences e só se alimentam daquilo que cabe em suas mãos. E a coisa vai ainda mais longe: ambas as linhagens renunciaram, desde a Antiguidade, ao uso de carroças ou veículos movidos a roda, evitando assim o risco de atropelarem os pequenos animais que porventura entrassem no seu caminho. Os Digambara carregam consigo pequenas vassouras, para que possam varrer sutilmente a terra onde irão se sentar. Tendo sempre caminhado a pé, não puderam ir muito longe, nem transpor as fronteiras do subcontinente indiano. Um nível tão elevado de austeridade serve, afinal, para purificar a alma destes indivíduos que, mediante a renúncia e o desapego, interrompem o afluxo de karma, libertando-se do sofrimento.

E as mulheres? Conscientes de que uma mulher peregrinando pela Índia sem roupa alguma seria algo muito perigoso, não lhes é exigido o mesmo do que os homens. Isto é sentido, contudo, como um obstáculo para as formas mais avançadas de renúncia e os jainas compreendem que nascer como o homem, em virtude destas oportunidades, guarda maiores chances de libertação.

É claro que devemos nos perguntar se um nível tão radical de ascetismo chega a ser de fato necessário. Viver sem roupas, andando a pé, e sem cozinhar a própria comida, não seria algo demasiadamente impraticável? É preciso ter em mente que os monges renunciantes que escolhem trilhar este caminho dependem totalmente da comunidade dos leigos para continuarem existindo. Estes leigos são as pessoas comuns que seguem os princípios da religião, mas que permanecem vivendo num estilo de vida mais próximo do comum, correspondendo às obrigações familiares e profissionais típicas. Tanto quanto nós, que vivemos num país de “católicos não-praticantes”, ficam divididos entre um caminho puramente devotado à vida espiritual, e aquele outro dentro do qual questões como casamentos e trabalho ainda fazem sentido. Por estas razões, cultivando os princípios ensinados por Mahavira dentro dos limites do possível, esperam pela oportunidade de renascerem com melhores condições para, finalmente, seguir o caminho da renúncia. Uma tal perspectiva também é comum nas comunidades budistas. Aqueles que, nesta vida, não dispõem das oportunidades para se entregaram exclusivamente à vida espiritual, exercitam aquilo que a religião entende como necessário para um renascimento favorável no futuro. Questões que nos parecem obviamente práticas não são, portanto, ignoradas. Em se tratando da vida moderna, parece-nos que uma vida vivida daquela mesma forma com que Mahavira e seus primeiros discípulos viviam está cada vez mais distante da realidade comum.

Ao ver um jaina totalmente nu, jejuando, desprovido até dos meios para viajar de um lugar ao outro, alguém certamente se perguntaria se uma tal vida é mesmo desejável. Como pode ser que esta seja a meta de alguém? Se a renúncia é feita tendo em vista o nirvana (a libertação, assim como ela também é compreendida pelos budistas), o que é que se poderia fazer com uma liberdade dentro da qual não se pode viajar ou cozinhar a própria comida, ou mesmo possuir uma muda de roupas? Este, é claro, é um tipo muito específico de liberdade que só alcança o seu sentido completo numa determinada vizinhança semântica. É algo que não tem nada a ver com potência (liberdade de ação), nem com constrangimento (impossibilidade de ação), muito embora o amadurecimento espiritual traga consigo uma liberdade para além do julgamento dos outros. A liberdade de que se fala aqui tem a ver com outra coisa, algo que se colocava como um tópico central da busca do movimento śramaṇa, e que é a relação entre ilusão e sofrimento.

Voltemos a uma questão importante, que é fundamental tanto para os monges como os leigos: o ahimsa. Um princípio tão fundamental serviu, por exemplo, como base para a filosofia política de Mahatma Gandhi. É verdade, aliás, que numa determinada fase de sua trajetória, ele vivia como um jaina e professava os ensinamentos de Mahavira. A sua adesão a um tipo de ecumenismo universalista nem mesmo poderia ser vista como algo estranho ao hinduísmo ou ao jainismo. No caso do hinduísmo, porque se trata, de fato, de um conjunto muito abrangente de expressões espirituais dotado de um mecanismo muitíssimo eficiente de absorção e sincretismo. No caso dos jainas, contudo, isto tem a ver com aquela que é uma de suas criações filosóficas mais fascinantes: a doutrina do anekantavada, também compreendida como um tipo de “teoria da relatividade”.

Apesar de não haver uma unidade de práticas ascéticas entre as diferentes linhagens monásticas, há uma unidade filosófica central ao jainismo. No que consiste, pois, uma tal doutrina? Anekantavada pode ser, de algum modo, traduzido como “realidade multifacetada”. Isto quer dizer que diferentes afirmações podem ser feitas sobre uma mesma coisa, a depender da perspectiva e das condições segundo as quais estas afirmações são feitas. A velha metáfora do elefante e dos cegos, cuja origem é de fato indiana, serve para ilustrar a situação. Toda verdade, toda sentença é, pois, relativa, ou melhor, conjectural. Isto não significa, contudo, que os jainas professem um tipo de relativismo absoluto tal e qual aquele afirmado em contextos mais ocidentais e tipificados como “pós-modernos”. A relatividade da filosofia jaina não resulta em relativismo total simplesmente porque ainda existe um ponto de vista absoluto a partir do qual é possível compreender a ambiguidade da realidade. Todavia, uma tal perspectiva só pode ser alcançada por indivíduos com uma prática espiritual muito avançada, porque foram capazes de eliminar as próprias paixões e preconceitos.

Esta formulação filosófica possui um sentido próprio à realidade dos debates teológicos e filosóficos do período das Upanixades em diante. Se de um lado os hindus afirmavam que a realidade se condensava numa única substância, o brahman, que a tudo preenche, os budistas, por sua vez, pretendiam afirmar que a realidade era eminentemente vazia, e que a única “substância” seria a vacuidade, sunyata – toda a matéria e a mente sendo, afinal de contas, um mero arranjo impermanente destinado ao perecimento.

Os jainas, posicionando-se exatamente no meio da discussão, afirmam que as coisas podem ser tanto permanentes quanto transitórias, a depender das condições dentro das quais são feitos os enunciados. Para tanto, subjacente ao anekantavada, há uma outra formulação, syādvāda, traduzida como “doutrina do talvez”, ou, em todo caso, uma doutrina segundo a qual todas as afirmações precisam ser qualificadas – ou seja, se aplicam num determinado contexto e apenas numa determinada situação.

Alguém mais atento certamente poderia objetar que, sendo tudo relativo e conjectural, uma doutrina como ahisma ou mesmo as práticas ascéticas, teriam sempre um sentido provisório. Mas, como dissemos, a relatividade não resulta em relativismo. O ponto de vista absoluto, capaz de observar todas as contradições e pluralidades da realidade, inibem a destituição do ahimsa de seu lugar central. Não há nenhuma possibilidade da violência deixar de ser violência. Por outro lado, isto traz consigo implicações diferentes para os monges e para a comunidade dos leigos. Aos leigos é autorizado o uso de violência na preservação de sua própria vida, ou seja, em caso de autodefesa e sobrevivência. Aos monges não.

Em tempos mais recentes, a doutrina do syādvāda passou a ser interpretada como um tipo de não-violência intelectual. Traduzo aqui um trecho extraído do livro de Jeffrey Long:

“[trata-se de] uma caridade diante de outros posicionamentos filosóficos e os seus possíveis insights sobre as características da realidade. Uma tal abordagem não está enraizada em meras noções de ‘tolerância’ – frequentemente conectadas com a secularização do mundo moderno – mas na própria natureza do universo em si mesmo. Especificamente, está enraizada no fato de que a realidade é multifacetada e que é portanto aberta para perspectivas múltiplas e não excludentes, e que a não-violência é um componente fundamental do caminho jaina para a libertação. Violência, paixões ilusórias, tais como aquelas envolvidas no apego unilateral a perspectivas particulares, produz um obscurecimento na alma a partir da atração material de karma, afetando o progresso da alma rumo à libertação. Por estas razões Haribhadra afirma que ‘aqueles grandes apreciadores de discussões infrutíferas devem ser abandonados por aqueles que desejam a libertação. Na verdade, aqueles que desejam a libertação não deviam se apegar nem apreciar coisa alguma’.

Em outras palavras, aquele que se engaja num debate filosófico e faz afirmações sem qualificá-las, afirmando a verdade exclusiva de um único ponto de vista, não apenas falha em experssar da verdade ao não levar em conta as muitas perspectivas possíveis pelas quais uma proposição se torna válida, como também corre o risco de provocar paixões inconvenientes (tais como competitividade, raiva, ou a defesa apaixonada de um ponto de vista) no curso de uma discussão, envolvendo-se mais ainda com o ciclo do samsara”.

Como a ontologia e a teologia jaina possuem implicações epistemológicas bastante relevantes, uma tal perspectiva pode servir, e tem servido, afinal, para enriquecer o diálogo interreligioso, situando os jainas numa posição um tanto privilegiada de abertura para a concordância e a compreensão mútuas. Isto se verifica até mesmo nos primórdios da religião, de acordo com as respostas que Mahavira teria oferecido a questões comuns que circulavam naquele contexto. Perguntas como “a alma é eterna?” ou “o Universo tem fim?”, e que teriam sido evitadas ou negadas pelo Buda, encontraram respostas afirmativas da parte de Mahavira até mesmo quando estas respostas se contradizem. E se, naquele caso, o atrito entre respostas afirmativas era ignorado, isto só pode significar que os jainas teriam encontrado um “caminho do meio inclusivo”, diferentemente do budismo, que seria um “caminho do meio exclusivo”.

O jainismo floresce, é verdade, em um contexto muito diferente daquele que encontramos no Brasil, seja há 500 anos ou hoje em dia. Mas também na própria Índia, ainda que exista um lastro cultural e todo um ponto de apoio para a vida de um renunciante, esta abertura parece se fechar cada vez mais. No século VI a.C., a busca pela libertação da alma era algo que fazia muito sentido. Ainda que isso pareça estranho aos brasileiros, as implicações éticas que uma tal busca traz para o mundo contemporâneo beneficia a todos os outros seres vivos que não a empreendem e nem chegam perto de empreendê-la – como se vê nos laços comunitários e na oferta de serviços não-violentos colocados à disposição da sociedade pelos leigos. O jainismo não é, portanto, uma religião voltada para um outro mundo, irreal, nem tampouco exagerada ou excêntrica nos seus modos. Milagres, céu, inferno, anjos, Apocalipse, nada disso é relevante para a austeridade e a não-violência jaina. Além disso, na nossa teologia ocidental, o campeão espiritual é quase sempre alguém que encontrou grande sucesso financeiro, com uma vida abundante e descendência numerosa. Qual é a sabedoria que os discípulos de Mahavira guardam para o mundo? A suspensão das certezas fixas, e uma postura espontânea de pacifismo. Para nós, sujeitos formados no bojo do cristianismo, parece que a resposta para o fim do sofrimento não é tanto a renúncia, mas o esforço e a superação da provação por meio da fé. Toda essa conquista seria, para um jaina, afinal, ilusória e provisória. Mas, por outro lado, no nosso entendimento, ela não serviria para aplacar uma parte do sofrimento no mundo? Com dinheiro temos mais condições de satisfazer nossas necessidades e vontades. Certo, claro, podemos concordar com isso, desde que estas riquezas não ensejem mais sofrimento, nem mais paixões, e nem mais apego. Originalmente, não se poderia afinal exigir de um jaina ou de um budista alguma coisa tão voluntarista como aquilo que nós, ocidentais, compreendemos como “fé”. Os discípulos de Mahavira ou de Buda concordavam com os seus mestres, faziam perguntas, e eram convencidos de que seus argumentos estavam corretos. Duvidar deles, inclusive, fazia parte do progresso espiritual. Um sábio jaina, nos certames de hoje em dia, provavelmente acrescentaria que não basta ter alguma fé, é necessário ter “uma fé correta”.

Se temos vivido em tempos de guerra ou em tempos de polarização política, com uma acentuação inédita de perspectivas lineares defendidas de forma aguerrida e violenta por aqueles que construíram ali suas barricadas, alçando à figura de mitos indivíduos desprovidos de quaisquer talentos e qualidades, entregando voluntariamente a eles a autoridade de que precisam para governar com tirania, os jainas, com certeza, teriam muito a nos ensinar. A paz não pode ser classificada como um tipo de idealismo político nem tampouco ser compreendida ou abordada como uma utopia. A paz pode ser verificada e comprovada logicamente, tanto pela intuição quanto pela razão. É o estado natural da vida, ao qual tudo retorna. A paz é, afinal, a única e verdadeira religião da humanidade. Abençoados sejam, pois, os discípulos de Mahavira.

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