o deus que existe

Alguns cientistas tântricos antigos compartilhavam de uma mesma ideia segundo a qual a criação do Universo é um adensamento de vontades que até então permaneciam contidas em um eterno estado de sutileza e inércia.

Havia um Nada? Provavelmente o que havia era um perfeito estado de equilíbrio no qual se conservava alguma potência criativa. Um triângulo equilátero que começa a se contorcer na direção de um dos ângulos. Do Nada as vontades se adensam até produzirem as condições que dão origem à Matéria – do não-manifesto ao manifestado. Da energia ao fato. Da matéria aos elementos do universo, o surgimento dos astros, planetas, a natureza, e os animais.

Na verdade, isso acontece o tempo todo – está acontecendo agora, a cada ideia nova que nasce.

Muitos veem nesse ato criativo um gesto dotado de intenção. Na medida em que uma superfície permanece estática, parada, não há nela nenhum traço distinguível. A partir do momento em que há uma agitação, é possível discernir uma identidade – que aparece por meio da diferenciação entre um estado anterior e um estado posterior. Mas qual é a intenção por trás do gesto? O Universo que compreender a si mesmo, produzindo a multiplicidade a partir da unidade.

Este gesto poderia ser descrito de forma circular. Noutras vezes já foi descrito como uma dança. O alcance mais extremo deste gesto é o ponto em que Deus (a Mente Cósmica) se diferencia de si mesmo. Nesta diferenciação se amplia a distância entre o criador e a criatura, e, por meio dela, é dada à criatura a liberdade de se esquecer do criador, e, portanto, de sua origem divina. Após a ação criativa, há, ainda, um movimento de retorno. O que se entende por um movimento de retorno, depois da culminação da multiplicação da vida, da qual resulta, por exemplo, a espécie humana, é uma vontade de regresso ao seio divino.

Trata-se de um ponto a partir do qual a individuação dessa consciência (manifesta na unidade individual de um sujeito, como o ser humano) pode então olhar para si mesma. Talvez como uma flexão divina, ou um espelhamento. Um encontro de si consigo ou então já com alguma outra coisa. Sim, porque alguém que olha para o espelho dificilmente entenderá que aquele reflexo que se vê ali é Deus – e no entanto, é exatamente disso que se trata.

Toda esta variedade de vida, incluindo aí os instantes sinistros, profanos, e miseráveis da existência, seriam então a evidência de um certo sucesso no gesto criativo da Mente Cósmica, posto que ela teria sido capaz de diferenciar-se de si mesma – toda a variedade de coisas do universo, incluindo todos os sujeitos que podem testemunhar a si mesmos e uns aos outros. Também a violência, as guerras, e a sensualidade, podem ser interpretadas como um adensamento ainda maior dessa vontade imanente.

Há uma certa tendência pela qual vemos o ser humano como o último animal, a última espécie resultante de um longo processo de evolução. E aqui, neste plano, desfrutamos da eterna primavera do mundo material em que se frutificam os ecossistemas da mente. Na perspectiva que desenhamos aqui, se os seres humanos parecem ocupar um lugar acima dos outros animais, isso se deve, exclusivamente, ao fato de que nós deveríamos possuir algo como uma lembrança da natureza divina – um sentimento ou um algo que nos faz cultivar religiões e adorar deuses.

Desta forma, a ansiedade pelas coisas divinas e sagradas, ou, pela união com Deus, sentimentos comuns aos povos de muitas culturas, nada mais seria do que a saudade que estas partículas individualizadas teriam de regressar ao estado original em que se encontravam diluídas no interminável brilho da graça divina, nas camadas mais numinosas e sutis da existência.

Menos aceita entre os cientistas tântricos é uma outra ideia, aparecida na Caxemira durante o século IX, atrelada à figura do mestre Anandasara, e perseguida à semelhança de uma heresia pelos adeptos shivaístas.

Trata-se de um interessante e raríssimo caso de ceticismo ateu dentro do tradicional sistema tântrico da região, à época já mais ou menos condensado no dársana das tríades, o Trika, depois vertido em texto pelo sábio Abhivanagupta, autor de muitos tratados, dentre eles o Tantraloka.

Anandasara sustentava que a libertação do espírito para além do invólucro do corpo e, consequentemente, a dissolução final da alma individual na grande alma cósmica (moksha), nada mais seria do que uma perversão, ou, a expressão de uma vontade ilusória (maya), nascida de uma trágica confusão mental: tal vontade funcionando como uma memória dos primeiros momentos da existência individual, a fecundação, e aquilo que hoje entendemos como a penetração do espermatozóide no óvulo, agora gravada como memória no samskara de todos os homens

Assim, a saudade de Deus seria, em tese, uma saudade natural do calor e da bem-aventurança do útero materno.

Os comentários de Anandasara, conservados nos fragmentos de um tratado em sânscrito, demonstram uma sofisticada percepção dos processos anatômicos e biológicos, sendo esta a razão pela qual preservou-se de forma relevante dentro de uma tradição bastante vasta, apesar de ser considerado profano e ateu.

As palavras utilizadas pelos discípulos de Anandasara, responsáveis pelas transcrição de seus ensinamentos orais, corroboram para o imaginário liberado de seus estados de transe e meditação. Termos que podemos traduzir como “imenso voo do ovo brilhante”, “concha divina”, “luz turva e ondulante de um berço”, “líquido indiferenciado e dançante”  são evocados para descrever as visões sem dúvida indescritíveis da Mente Cósmica, identificada aqui na potência criadora natural da mulher. E ainda, “raio gerador”, “atravessar a membrana sutil”, “desfazer-se e refazer-se com outra forma”, “unir-se à contraparte gerando um”, são utilizados para descrever as sensações desfrutadas tanto pela centelha que durante a fecundação geraria o feto, quanto aquelas sentidas pelo espírito ao libertar-se do corpo para integrar a mente divina.

Outros muitos trechos são reservados para enaltecer o orgasmo masculino e o feminino, sublinhando entre eles uma diferença: o imenso prazer obtido pelo prolongamento da ereção e a contenção do gozo entre os homens, e o acúmulo de orgasmos entre as mulheres. Para tanto, algumas técnicas são ensinadas, acompanhadas por mantras devocionais dirigidos ao órgão reprodutor das fêmeas.

Hinos e posições para meditação, massagens, e atos sexuais prolongados estão compilados num volume jamais traduzido para qualquer outro idioma além do sânscrito.

Dentre estas posições, uma que é bastante recomendada é aquela em que o homem medita com o rosto colado ao ventre da mulher, que por sua vez recita um longo mantra de encantamento sexual. A explicação, exposta numa linguagem crepuscular, atribui-se ao umbigo da mulher, o ponto mais sagrado do universo, um centro de gravidade perto do qual vivemos pelo menos uma parte de nossas vidas.

Não sabemos ao certo como a escola de Anandasara chegou a ser de fato perseguida. Sua oposição às ideias abstratas de um deus transcendente lhe renderam a pecha de iconoclasta e sensualista. Sua interpretação erotizada das imagens de Shiva e Shakti  o tornaram um pária do brahmanismo.

Intérpretes posteriores compreendem sua soteriologia da seguinte forma: se a mulher encarna o princípio feminino de Shakti, que é também Prakrti, ou seja, a própria Natureza (e Natureza Fenomênica), então é a mulher que se sente em casa neste mundo, e não o homem. O princípio masculino, Purusa, é um impotente. Por isso as tecnologias masculinas tendem a ser mais transformadoras e destrutivas, porque estão desconectadas da terra. O homem é um estrangeiro, e a natureza é da mulher. Essa interpretação contemporânea dos eruditos indianos chega mesmo a postular que essa teoria se verifica também na biologia: a incidência do cromossomo Y, que é posterior ao X, indicaria que todos nós, na fase embrionária, começamos como mulheres, e que alguns, depois, se tornam homens. O aparecimento do cromossomo Y seria uma manifestação da vontade de Purusa de participar ativamente da brincadeira cósmica, gerando um novo gênero – como o Espírito que se deixa seduzir pela Natureza e precisa criar um personagem para participar da festa.

Buscando um exemplo no mundo dos animais, estes intérpretes encontraram na sociedade das abelhas o mais alto grau de perfeição alcançado pela criação. Uma sociedade em que os machos são totalmente descartáveis, e que funciona a partir do trabalho incansável das fêmeas. Uma sociedade tão perfeitamente integrada ao meio ambiente que grande parte de suas outras espécies simplesmente depende dela.

Comentadores mais radicais diriam que a prática espiritual, a meditação, o yoga, seriam simplesmente perda de tempo. A única realização espiritual possível seria a própria mulher, que se torna cada vez mais exuberante na medida em que passa adorar a si mesma como deusa. Na esteira da decadência dos tempos modernos, a ausência de modelos de virilidade resultaria numa adoração total do sexo feminino, ao ponto em que até os homens quereriam se tornar mulheres.

Pensando em Anandasara, nesta sua forma de comparar os momentos mais extremos e mais significativos da existência, a saber, o nascimento, a morte, e o sexo, me recordo os versos de um antigo e velho e pouco celebrado poeta sem nome:

desaparecer sob o teu ventre

voltar para dentro de ti

e mergulhar na luz sanguínea

dos sonhos que terei depois de morto.

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